Por Dão Real Pereira dos Santos no Justiça Fiscal
Havia em algum lugar do Brasil um condomínio que era até bem organizado. Eram 50 condôminos, todos proprietários de seus imóveis e constituía, portanto, uma pequena comunidade de famílias com ocupações, profissões e origens diferentes, mas que tinham em comum o seu condomínio. Como em todo condomínio, todos os meses, havia uma série de despesas ordinárias referentes à segurança, à limpeza, aos elevadores, aos salários dos funcionários, iluminação, água, etc. que precisavam ser pagas. Havia também, eventualmente algumas despesas extraordinárias referentes a pequenas obras de manutenção e conserto dos equipamentos. Esporadicamente, surgia a necessidade de algum investimento maior que implicava também algumas despesas extraordinárias, por exemplo, uma reforma no salão de festas, instalação de novos equipamentos de segurança, construção de uma quadra poli-esportiva, instalação de uma piscina, pintura dos prédios etc.
Embora os condomínios, via de regra, acabem constituindo normalmente comunidades com baixo nível de desigualdade social, pois são formados a partir de uma ótica patrimonial, sobre um conjunto de propriedades privadas, limitadas, portanto, pela capacidade econômica dos proprietários, o condomínio dessa história contemplava alguns níveis sociais diferenciados em função de ser composto por imóveis distintos. Havia imóveis com apenas um dormitório e outros com dois ou três. Havia também alguns apartamentos que ocupavam o andar inteiro além dos conhecidos duplex e triplex, sem falar de algumas luxuosas coberturas. Por conta disso, a divisão das despesas, desde que o condomínio foi constituído, seguia uma regra de proporcionalidade: todas as despesas ordinárias e extraordinárias eram apropriadas e pagas pelos condôminos proporcionalmente às áreas dos seus imóveis.
Todos os proprietários, por sua vez, tinham consciência de que o rateio das despesas constituía uma necessidade justificada pela promoção do bem comum e de que a proporcionalidade na cobrança é que atribuía ao rateio um caráter mais justo e equilibrado. São justamente as áreas e serviços de uso comum e que pertencem e atendem a todos, e por isso mesmo não podem ser apropriadas por ninguém individualmente, que, tendo sido decididas e organizadas de forma democrática, impõem a todos a obrigação de contribuir financeiramente para o seu funcionamento. O interesse comum e geral, portanto, justifica a imposição da cobrança.
Apesar de divergências pontuais e de reclamações normais referentes a ruídos, aos animais, estacionamentos, etc, e de eventuais atrasos nos pagamentos, o ambiente do condomínio sempre foi bastante tranquilo, até que alguns condôminos passaram sistematicamente a inadimplir com suas obrigações de pagarem suas parcelas condominiais, alguns por que estavam passando por dificuldades financeiras, outros por que resolveram melhorar suas vidas individuais, comprando mais um carro, reformando seu imóvel, realizando a viagens dos seus sonhos etc, outros ainda simplesmente deixaram de pagar simplesmente porque não concordavam com a forma como o síndico administrava o condomínio, ou simplesmente porque achavam que o valor cobrado não era justo.
O fato é que o condomínio começou a ficar com dificuldades financeiras para honrar até mesmo suas despesas de custeio, de forma que, uma assembléia convocada extraordinariamente, resolveu aumentar a taxa de condomínio, e todos passaram a contribuir com um valor maior, com exceção, é claro, dos inadimplentes. Também foi proposto e colocado em prática um programa radical de redução das despesas. Um verdadeiro ajuste fiscal teve que ser feito, para que os bens e serviços de uso comum continuassem sendo disponibilizados, e oferecidos a todos indistintamente, até porque, por sua natureza, não poderiam ser individualizados. Mas ficaram suspensos, no entanto, os investimentos, algumas obras de manutenção e o reajuste dos salários dos funcionários e o condomínio começou a atrasar seus compromissos com os fornecedores, acarretando a incidência de multas e juros.
O fato é que tanto os que não pagavam por estarem em situação difícil, como os que não pagavam para melhorar de vida, ou ainda os que não pagavam simplesmente porque não achavam justo, estavam todos sendo beneficiados e financiados pelos que continuavam pagando.
Após inúmeras tentativas de cobrança, e pressionado pela situação difícil por que passava o condomínio para pagar suas contas, e também pressionado pelas relações de amizades, tão comuns nestas pequenas comunidades, o síndico acabou oferecendo, ou aceitando, uma negociação proposta pelos devedores, de pagarem seus débitos à vista, evitando a demora das cobranças judiciais, desde que lhes fossem perdoados os juros e multas das parcelas não pagas e ainda lhes fossem concedidos alguns descontos sobre os valores originais. Assim, o condomínio obteve de uma única vez, uma boa entrada de recursos, uma verdadeira bolada que permitiu ao síndico promover uma série de reformas que estavam planejadas há bastante tempo e pequenas obras de manutenção que eram necessárias e urgentes.
Vários condôminos, que não costumavam acompanhar a vida econômica do seu condomínio, nem mesmo participar das assembléias, aplaudiram a negociação e comemoraram a eficiência administrativa do síndico, alguns, inclusive, chegando ao ponto de atribuir as melhorias no condomínio à bondade e à sensibilidade dos vizinhos inadimplentes.
Outros, no entanto, mais participativos e preocupados com a justiça e com possíveis efeitos danosos que poderiam advir deste tipo de negociação, criticaram e consideraram as negociações realizadas como um ato de desrespeito a todos os que, por tanto tempo vinham pagando em dia os seus compromissos, algumas vezes até mesmo em detrimento de algum projeto pessoal, alguns em situação financeira precária, pagando, inclusive, valores excedentes para cobrir as parcelas não pagas pelos inadimplentes e juros decorrentes do endividamento do condomínio.
O clima que era de harmonia começou então a se degradar. Em novas assembléias, agora com participação maciça e organizada, sob o pretexto de diminuir a inadimplência, acabou sendo aprovada, embora com votação apertada, uma proposta de modificação na forma de rateio das despesas, eliminando a proporcionalidade com as áreas dos imóveis, sob o argumento de que os proprietários de imóveis maiores vinham tendo dificuldades para honrar o pagamento do condomínio, alguns inclusive, já estavam novamente inadimplentes. Assim foi criada uma taxa de condomínio igual para todos: total das despesas dividido pelo número de unidades condominiais. Os proprietários de imóveis menores, e de menor valor, portanto, passaram a pagar um valor relativamente maior enquanto que os que possuíam imóveis maiores passaram a pagar menos. Alguns que possuíam mais de um imóvel tiveram um desconto no valor da taxa. Tudo isso para estimular o pagamento em dia.
O clima, que já estava fragilizado, conflagrou-se de vez. Um número ainda maior de moradores passou a criticar com veemência a forma injusta e desrespeitosa com que o condomínio organizava e tratava das suas questões financeiras. Consideravam que os menos favorecidos estavam financiando o bem estar dos mais favorecidos.
O grau de descontentamento chegou a tal nível que vários outros condôminos acabaram cedendo à tentação de também deixar de pagar seus compromissos na expectativa de, acumulando estes valores, poder negociar a dívida em condições mais favoráveis em algum momento futuro.
A consciência coletiva e comunitária que havia em outros tempos, de tanto assistir a glória e o sucesso dos que não a respeitavam, foi dando lugar a um sentimento de resignação e de aceitação da injustiça, o que acabou estimulando um comportamento cada vez mais individualista voltado para a busca da obtenção de mais vantagens individuais.
Esta é uma histórica de ficção. Mas, qualquer semelhança com algum condomínio existente ou com a forma como se organiza o sistema tributário no Brasil NÃO é mera coincidência.
*Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil
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