No ano passado, ocorreu um desses episódios que ilustram com clareza e didatismo a pobreza de nossa vida cultural, o caráter superficial do debate de idéias no país e as facilidades oferecidas a determinadas fatias do mundo intelectual para defender seus pontos de vista nos meios de comunicação.
Atendendo a solicitação de um professor, o Conselho Federal de Educação fez uma leitura de Caçadas de Pedrinho, uma das obras mais conhecidas de Monteiro Lobato, e concluiu que ela exprimia uma visão racista de Tia Anastacia, a cozinheira do Sítio do Pica Pau Amarelo. Ao longo da obra, como os leitores mais antigos devem recordar, Lobato chega a referir-se a Anastácia como “macaca”, prefere usar a expressão “beiço” para falar de lábios e assim por diante.
Atendendo a solicitação de um professor, o Conselho Federal de Educação fez uma leitura de Caçadas de Pedrinho, uma das obras mais conhecidas de Monteiro Lobato, e concluiu que ela exprimia uma visão racista de Tia Anastacia, a cozinheira do Sítio do Pica Pau Amarelo. Ao longo da obra, como os leitores mais antigos devem recordar, Lobato chega a referir-se a Anastácia como “macaca”, prefere usar a expressão “beiço” para falar de lábios e assim por diante.
Em parecer divulgado pelos jornais, o Conselho sugeriu que as edições futuras de Caçadas de Pedrinho viessem acompanhadas de um texto explicativo, capaz de situar a discussão sobre racismo em seu contexto histórico. Seria uma forma de permitir que toda pessoa que fosse ler Lobato daqui para a frente pudesse fazer uma reflexão sobre aquelas passagens agressivas em relação aos brasileiros e brasileiras negros.
Leitor de Lobato na infancia, quando ficava chocado e confuso diante da linguagem violenta empregada para falar de Anastacia, sentindo aquela compaixão triste das crianças por quem sofre uma agressão muito forte e incompreensível, eu mesmo achei que o texto explicativo seria uma boa idéia — e escrevi essa opinião aqui mesmo, neste espaço.
Na verdade, a resolução do Conselho produziu um escândalo. Com uma motivação óbvia mas oculta — o debate sobre cotas e toda política de ação afirmativa estava o auge — uma patrulha de jornalistas, intelectuais, professores e polemistas de plantão atirou-se com apetite sobre a resolução do Conselho. Falou-se em censura, em ameaça a liberdade de expressão — ainda que a legislação considere racismo um crime inafiançável — e também se sugeriu que nossos professores são tão despreparados que deveriam aprender a ler Lobato como se deve.
Num programa de TV, uma doutora em literatura de xale imenso e gestos exuberantes chegou a sugerir que seria melhor entregar Lobato as crianças do que deixá-lo aos cuidados de mestres incompetentes e sem bom senso.
Numa reação relâmpago, convenientemente aplaudida, o Ministério da Educação cancelou o parecer do Conselho.
Vê-se agora que todos perderam uma boa oportunidade de entender melhor o que ocorria e defender a qualidade do ensino e da formação de nossas crianças. Produziu-se um lamentável show de intolerancia, com a desculpa de que se queria defender a liberdade de expressão mas que serviu apenas para tentar abafar um debate necessário à sociedade brasileira, que envolve a obra e o pensamento de seu mais popular autor infantil.
Seguindo uma pista levantada pelo colunista Arnaldo Bloch, do Globo, o jornalista Andre Nigri publicou uma reportagem na edição da revista Bravo! que está nas bancas na qual encarrega-se de demonstrar que o Conselho chegou apenas à ponta do imenso iceberg racista de Lobato. Nigri foi atrás da correspondencia pessoal do escritor e descobriu que as palavras sobre Tia Anastacia são apenas a face visível de um pensamento onde o racismo é um componente profundo e relevante.
A reportagem deixa claro que a idéia de inferioridade intrínseca dos negros em relação aos brancos europeus ajuda a estruturar as explicações de Lobato sobre as mazelas do Brasil.
Andre Nigri revela, por exemplo, que Lobato lamentava que a elite branca brasileira não tivesse formado uma organização como a Klu Klux Klan, entidade terrorista de brancos americanos, que perseguia, sequestrava, torturava e enforcava negros como forma de impedir que tivessem à vida em sociedade após a abolição da escravatura.
(Imagine que ontem, por coincidência, eu ouvia Strange Fruit, de Lewis Allan, que Carlos Rennó traduziu e Seu Jorge gravou no belíssimo CD Nego. A música descreve o cadáver de um negro americano pendurado numa árvore, com os olhos inchados e a boca deformada).
Referindo-se a negros brasileiros, Lobato emprega palavras dão deprimentes que tenho vergonha de redigí-las aqui. (São como determinados palavrões que nunca devem ser pronunciados, a menos que se esteja diante de platéias muito especiais).
Quando fala dos mestiços, Lobato diz que são a vingança dos negros trazidos à força da África e que o acasalamento entre brancos e negros havia servido para enfraquecer os brancos.
E agora? Eu acho que para começar seria preciso fazer justiça à resolução do Conselho Federal de Educação. Pelo menos para lembrar que aqueles professores criticados e condenados como burocratas sem cultura e sem alma tinham um ponto de verdade em seu argumento, que poderia estimular uma reflexão sobre idéias que a humanidade considera inaceitáveis, criminosas. E é justo reconhecer que tiveram a capacidade de apontar coisas que nem todos viam — ou não queriam ver.
Não sei se Lobato cultivou as idéias racistas ao longo de toda vida, se mudou de opinião ou seguiu mantendo este lado perverso de seu pensamento em conversas privadas. Boa parte de sua obra foi escrita num momento em que uma parcela do mundo intelectual aceitava as noções de superioridade racial que alimentaram o nazismo de Adolf Hitler.
O importante é registrar que a partir de agora a atitude de reconhecer o racismo no pensamento de Lobato deixou de ser uma opção, uma especulação, um ponto de vista subjetivo num debate sujeito a muitas interpretações, para tornar-se uma questão de honestidade intelectual. Pode-se fingir que nada mudou e tentar colocar a sujeira embaixo do tapete.
Ou, numa atitude mais saudável, pode-se encarar uma discussão necessária, que envolve um ponto delicadíssimo: num país onde 53% da população considera-se negra, nosso principal autor infantil admirava o terror racista da KKK, culpava os negros pelo nosso atraso e condenava a miscigenação.
O que fazer?
Como reintroduzir Lobato para os brasileiros do futuro? Como preservar uma obra de qualidade indiscutível, com momentos geniais, sem esconder um desvio tão gritante e doloroso?
Como reintroduzir Lobato para os brasileiros do futuro? Como preservar uma obra de qualidade indiscutível, com momentos geniais, sem esconder um desvio tão gritante e doloroso?
Essa é a discussão real.
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