Estávamos em um fim de tarde à beira-mar, buscando conchas para fabricarmos as setas das flechas. Vimos, ao longe, umas três mãos de canoas que possuíam troncos muito altos e retilíneos, com umas grandes folhas brancas. Tais canoas eram muito maiores do que as que produzíamos para a pesca ou para os festejos da tribo. Preocupamo-nos. Seria alguma tribo inimiga? Provavelmente não, pois não era possível navegar no mar. Seriam deuses? Talvez.
Fizemos uma reunião naquela noite, em torno da fogueira. Rogamos aos deuses da natureza para que nos protegessem. Perguntávamos se algo de errado havia ocorrido, se o totem havia sido violado. Estávamos apreensivos.
Logo pela manhã, escondemo-nos na orla e observamos. De dentro das gigantescas canoas paradas na entrada da baía, outras saíam, menores, mais ainda muito maiores que as nossas. Homens grandes e cobertos de algo que parecia peles bem finas, carregando cajados reluzentes na cintura e outros objetos que nunca havíamos visto, entraram nas canoas. E remaram. Remaram. Remaram. Desembarcaram na praia.
Esses homens que incrivelmente tinham pelos no rosto e peles da cor do miolo da mandioca, aproximaram-se da mata costeira. Contamos umas três mãos e meia de homens, apenas. Estávamos em maior número, pintados para a guerra. Resolvemos nos impor, saindo da mata ao mesmo tempo cinquenta mãos de homens armados de tacapes e flechas.
Eles pararam e até recuaram um pouco em direção às canoas.
Um deles se encheu de objetos e se aproximou lentamente até uma certa distância que nos permitiu ver que seus olhos eram da cor do céu. Ele sorriu com aquela boca coberta de pelos e deixou na areia da praia tais objetos, retornando à canoa.
Esperamos. O pajé então deu ordem ao mais destemido dos guerreiros para que capturasse os objetos e os trouxesse até a linha onde começava a mata fechada. O guerreiro caminhou vinte braças, catou tudo e voltou correndo.
Havia objetos brilhantes, de cores nunca vistas. Um deles mostrava a face de quem lhe ficasse na frente, como se vê nas águas de uma nascente de rio, mas muito melhor. Ficamos maravilhados com esses seres. Seriam deuses tão bons que nos presenteavam sem que nada pedíssemos? Provavelmente sim. Ainda nos perguntávamos.
Com os presentes, tivemos certeza de que viriam em paz. Pudemos nos aproximar. Eles então nos perguntaram, com gestos, onde conseguir água e um pouco de comida. Mostramos uma nascente próxima.
Logo depois, mais homens desceram das canoas imensas. Eram umas cem mãos de homens. Gente demais cabiam naquelas canoas imensas. Não havia mulheres.
Com o passar dos dias, porém, descobrimos algumas peculiaridades deles. Eles tinham um cheiro muito ruim e não tomavam banho. Seus dentes, ao contrário dos nossos, eram doentes e também exalavam mau-cheiro suas bocas. Uns insetos pequeninos viviam em suas cabeças e lhes sugavam sangue e logo também começaram a empestar nossa tribo. Eles trouxeram doenças que para nós eram muito perigosas, pois não estávamos acostumados a elas e nossas raízes conhecidas não as combatiam. Eles também veneravam uns totens coloridos e uma imagem de um homem com os braços pregados entre dois troncos cruzados que eles nos sinalizaram ser um deus. Perguntamo-nos: como pode ser um deus um homem amarrado a dois troncos?
Eles nos mostraram umas pedras douradas e perguntaram onde achar mais. Havia muitas daquelas pedras nas áreas onde ficava nossa tribo. Para nós essas pedras nada valiam, mas percebemos que eles ficavam muito contentes quando encontravam uma e nos retribuíam com objetos coloridos.
Eles tinham um comportamento estranho. Não respeitavam a floresta e nem temiam os nossos deuses. Tinham objetos reluzentes que cortavam as árvores e o que mais fosse, sem dó. Tinham outros que pareciam um pequeno tronco, onde inseriam um pó preto e que de onde saía um barulho de trovão, fumaça e fogo e eram capazes de matar cotias e outros animais. Pareciam se divertir em matar macacos que depois sequer comiam. Não entendíamos como se podia matar um ser sem uma razão. Logo nós que, quando matávamos algum animal, pedíamos perdão à alma dele, explicando que aquilo era necessário para nossa sobrevivência.
Sem que percebêssemos, em poucos meses esses bárbaros foram nos tomando tudo. Aí já conseguíamos nos comunicar, ainda que com dificuldade, com aqueles homens que falavam uma língua tão estranha e nos chamavam de índios. Eles se diziam ser europeus, uma terra distante e que, segundo eles, era muito próspera, mas que lá não mais havia tantas florestas e nem pedras amarelas porque eles as destruíram. Perguntamo-nos: será que agora virão destruir as nossas florestas como fizeram com as deles? Só assim percebemos o quanto eles eram maus e bárbaros. Mas já era tarde demais.
Apesar de tanta maldade, eles faziam rituais em torno daquela grande imagem do homem pregado na cruz, obrigavam-nos a nos ajoelharmos para aquele totem de pau e nos proibiram de professar nossas crenças nos deuses da natureza. Seus pajés e feiticeiros, em roupas coloridas, diziam que seria melhor assim e que eles eram os portadores da bondade e da verdade. Teríamos, segundo esses bárbaros, que aceitar a verdade deles. Quem não aceitasse seria punido ou morto, pois tudo aquilo era para o nosso bem. Dentro em pouco, começaram também a tomar à força e a praticar coitos com nossas mulheres. Esses usurpadores fizeram com que muitos de nossas tribos e das tribos vizinhas fossem torturados e depois mortos.
Impuseram, na força, sua vontade. Muitos de nós foram presos pelos pés e colocados para serviços pesados. Nossos guerreiros morriam porque se recusavam a comer, pois não pode existir vida sem liberdade. Aguentamos o quanto foi possível, ou ainda mais além. Revoltamo-nos, mesmo sabendo de nosso destino cruel, pois nascemos ou para sermos livres ou morrermos pela liberdade. Houve guerra.
Em nome da bondade, fizeram-nos tanto mal. Em nome da esperança, tiraram-nos o que havia dela em nós. Em nome da paz, obrigaram-nos a guerra. Em nome da felicidade, trouxeram-nos tristeza e dor. Em nome do amor, despejaram um ódio inexplicável contra nós.
Para cada bárbaro que matávamos, eles conseguiam matar vinte dos nossos guerreiros com suas armas de trovão e seus cajados feitos de um material duro e cortante. Eles tomaram nossa aldeia e mataram os curumins. Os guerreiros que restaram entraram mata adentro. Famílias foram destruídas. A taba foi totalmente devastada. E o mal prevaleceu.
Em busca de nossas riquezas, esses opressores que nos invadiram se alastraram como pragas e se impuseram em todos os locais que chegaram, do estuário do Amazonas às cordilheiras andinas. Jês, tupis, caetés, guaianases, potiguaras, tamoios, timbiras, tupinambás e tupiniquins, todos sucumbiram.
Antes de seu último suspiro, diz a lenda, o pajé de nossa tribo, já vencido e mortalmente ferido, perguntou a um dos bárbaros:
- O que é tudo isso?
E ele respondeu:
- É a modernidade.
* Escrevi esse conto como homenagem ao filósofo Enrique Dussel e ao seu Ética da Libertação, que traz o conceito de transmodernidade. Quer saber mais sobre ele e esse conceito? Clique aqui.
**Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
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