1. Jacques Derrida, no primeiro dos textos que compuseram Força de Lei, recolhe em Montaigne a ideia de que, se as leis se mantêm em crédito, é por serem leis, não por serem justas; trata-se da força que advém do que o próprio Montaigne chamara “o fundamento místico da autoridade” (Derrida, 2007, p. 21).
Derrida percebe que a desarticulação entre direito e justiça proposta por Montaigne implicava que atribuíssemos um “crédito” à autoridade da lei que ela não pode ter por si. Portanto, a fundação do direito é efetuada por meio de uma força performativa – estatuída como extensão do próprio ato instituinte – ou, como prefere Derrida, mística, autoridade fundada em si mesma, violência sem fundamento.
2. Walter Benjamin, na abertura de um de seus últimos textos, elevava à condição de tarefa de uma crítica da violência “a apresentação de suas relações com o direito e a justiça” (Benjamin, 1986.). Não por acaso, Benjamin estabelecera os horizontes de sua tarefa crítica sobre a ambiguidade da palavra alemã “Gewalt” que, a um só tempo, pode significar violência e exercício de autoridade legítima (staatsgewalt). Se, por um lado, a crítica da violência, segundo Benjamin, deveria engastar-se na apresentação de suas relações entre direito e justiça, por outro, “A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história” (Benjamin, 1986).
3. Giorgio Agamben, jurista e filósofo político de declarada inspiração benjaminiana, e curador da edição das obras completas de Benjamin na Itália, em Meios sem fim, descreve, sob o título “Polizia Sovrana”, uma relação aparentemente paradoxal entre polícia e soberania, legalidade e exceção. Classicamente, o Direito Público sempre caracterizou o poder de polícia como atividade limitada à rigorosa execução da lei. A assumir-se como válida tal definição, como seria possível, então, atrelar os conceitos de polícia (cuja ação está, por definição, limitada ao ordenamento jurídico) e soberania – um conceito, por definição, metajurídico, embora fundador do direito?
4. Um primeiro ponto de contato é sugerido por Michel Foucault (2008, p. 429) em Segurança, Território, População. Turquet de Mayern teria visto as atividades de governar e de exercer o poder de polícia como um só e mesmo gesto; toda a ordem em um Estado derivaria dessa atividade de polícia, que alcançava desde a educação das crianças até a gestão da circulação de mercadorias e de pessoas. É daí que o Estado mesmo deve retirar sua força, assegurando que os homens vivam e que não morram em grandes quantidades, de forma tal que a polícia constitui-se como o conjunto das intervenções e dos meios que garantem “que viver, melhor que viver, coexistir, será efetivamente útil à constituição, ao aumento das forças do Estado” (Foucault, 2008, p. 438). Tratava-se, pois, de fazer da felicidade dos homens a utilidade do Estado, a própria força do Estado, como diz Michel Foucault; eis o motivo pelo qual, no interior das definições da razão de Estado, encontramos, até mesmo, uma alusão à felicidade dos homens. Uma vez que a polícia regulamenta o modo pelo qual os homens vivem, coexistem, trocam, circulam etc., Foucault lembra que no Tratado de Direito Público de Domat encontra-se uma identidade quase sem resíduos entre as ações de urbanizar e policiar.
Foucault, no entanto, percebe que a parcela que cabe à polícia na política, ou na gestão da razão de Estado, não pode ser dissociada de uma teoria e de uma prática governamentais, geralmente postas no mercantilismo, como aquilo que proporciona o equilíbrio em meio à intra-competição européia. Na medida em que o Estado passa a interessar-se pela governamentalidade, nasce a polícia, e é o mercado quem aparece como a grande força do Estado.
Embora derivada do poder régio, a polícia será percebida como não sendo justiça, nem como prolongamento desta. Isto já afirmava um teórico do Direito como Bacquet: as leis seriam definitivas e permanentes, enquanto as coisas de polícia seriam as instantâneas, as imediatas, como dizia Catarina II. Aí está a especificidade da polícia: no detalhe. A seguir Foucault (2008, p. 458), trata-se de um golpe de Estado permanente, de uma polícia que não necessita de leis, mas sobrevive em um mundo plenamente regulamentar, fazendo proliferar enormemente disciplinas locais e regionais.
5. Quase duas décadas depois de Foucault ter mostrado a mútua gênese de política e polícia, Agamben esclarece o enigma da proximidade entre polícia e “o nexo constitutivo entre violência e direito que caracteriza a figura do soberano”:
Segundo o antigo costume romano, ninguém, por nenhuma razão, podia interpor-se entre o cônsul dotado de imperium e o lictor mais próximo que carregava o machado sacrificial (com o qual se executavam as sentenças de pena capital). Essa contigüidade não é casual. Se o soberano é, de fato, aquele que, proclamando o estado de exceção e suspendendo a validade da lei assinala um ponto de indistinção entre violência e direito, a polícia move-se sempre, por assim dizer, em um similar “estado de exceção”. As razões de “ordem pública” e de “segurança”, da qual essa se encontra em cada caso incumbida de decidir, configura-se uma zona de indistinção entre violência e direito exatamente simétrica àquela da soberania (Agamben, 1996, p. 84).
O ingresso da soberania na figura da polícia acaba por levar à criminalização do inimigo. Classicamente, pela aplicação do princípio par in parem non habet jurisdictionem, nenhum soberano poderia ser julgado como criminoso pelo soberano da nação inimiga. No entanto, Agamben (1996, p. 85-86) observa que desde o fim da Primeira Guerra Mundial, teve início um processo que excluía o inimigo da humanidade civil e o caracterizava, ao mesmo tempo, como criminoso. Tal processo teria sido levado a cabo no interior de uma operação de polícia cuja atuação não se encontrava vinculada por nenhuma regra jurídica.
Da aproximação definitiva entre soberania e polícia, Agamben ri-se do fato de os soberanos não perceberem que esta criminalização pode, a qualquer momento, voltar-se contra eles: “Hoje, não há sobre a terra um chefe de Estado que não seja, nesse sentido, virtualmente um criminoso. Cada um que hoje veste o manto triste da soberania sabe poder ser tratado, um dia, como criminoso por seus colegas.” (Agamben, 1996, p. 86).
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O que Tropa de Elite II mostra senão as variadas expressões dessa co-originariedade entre polícia e político, de que falaram Michel Foucault e Giorgio Agamben? O que é a polícia, hoje, senão o seio no qual lei e perversão da lei fazem duas imagens simétricas e apenas aparentemente contrapostas? O desafio de pensar aquilo que está legível em Tropa de Elite II está em atingir o coração de certas zonas obscuras na própria visibilidade nua de suas imagens.
O subtítulo teria constituído o primeiro signo de um ato falho que dá a ver o sentido que decanta por debaixo das montagens: “O inimigo agora é outro” pode muito bem sugerir que a co-originariedade entre polícia e política não pode passar-se – nem no primeiro nem no segundo dos volumes – da política do amigo-inimigo schmittiana. De “missão dada é missão cumprida” – subtítulo do primeiro dos filmes – a “O inimigo agora é outro”, faz-se semiologicamente a passagem entre a polícia como atividade de mera execução da lei ou dos comandos dos superiores hierárquicos em direção à política higienista de extermínio “do inimigo”: o pobre, o excluído, o traficante, o favelizado, aquele ao qual lei alguma socorre, aquele sobre cuja vida e morte o policial-soberano decide livremente e quase sempre impune.
Daí porque as políticas de “apaziguamento” e “urbanização” nas favelas brasileiras, especialmente da cidade do Rio de Janeiro, fazerem um só corpo com a atividade de polícia; atividade essa que, no segundo filme, dará a ver as relações imediatas entre exercício do poder de polícia e circulação de pessoas, coisas, mercadorias, mercados paralelos para satisfazer desde necessidades infinitesimais da vida orgânica (o gás de cozinha, e.g.) até a necessidade de inclusão na sociedade de consumo e do espetáculo (a tevê a cabo pirata que ingressa na favela).
Poucos dias antes do chamado “massacre do Realengo”, um suspeito de ter cometido o crime de roubo é perseguido e capturado pela Polícia Militar de São Paulo. Os policiais imobilizam o suspeito, que estava desarmado, com um tiro na perna; após capturado, o suspeito é conduzido até o cemitério de Ferraz de Vasconcelos e executado.[1]
Nascimento, tido como o último dos heróis brasileiros, trabalha moral e dualmente com a política do amigo-inimigo, do bom e do mau cidadão, do cidadão com direitos e do cidadão de segunda classe, sem direito a ter direitos, como quisera Hannah Arendt; cidadão que pode ser interrogado violentamente e a qualquer tempo, que pode ter sua residência invadida (afinal, quem dirá que uma casa humilde em área de invasão em favela é domicílio inviolável no sentido constitucional do termo?), torturado, “trabalhado ou enfiado no saco”, na gíria do BOPE, ou até mesmo executado sumariamente a fim de convir com a política higienista e de extermínio social do outro. A pergunta que gostaria de fazer, e que ultrapassa em muito o pobre diagnóstico que Tropa de Elite II é capaz de realizar, talvez possa ser resumida no seguinte: quando e por que perdemos a capacidade de nos assombrar com o que é ordinário (as torturas, as graves violações de Direitos Humanos, as execuções sumárias que têm lugar todos os dias nas grandes cidades) e passamos a nos assombrar exclusivamente com o imprevisível? O que isso significa? Será que a lição que Realengo deixa não é apenas esta: deveríamos nos escandalizar menos com o imprevisível e mais com o ordinário? Ou será que, inescapavelmente, continuaremos a cumprir o que Turquet previra: “[A polícia] se ramifica por todas as circunstâncias da vida do povo, por tudo o que o povo faz ou empreende”; ou, talvez, como quisera Foucault de maneira mais sintética, será que nunca seremos capazes de escapar do adágio segundo o qual, absolutamente, “A polícia inclui tudo”?
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bolati Boringhieri, 1996.
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al., São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1986.
DERRIDA, Jacques. Força de lei. O “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[1] Notícia de “O Globo”: Mulher vê execução em cemitério e denuncia policiais militares em SP (04.04.2011). Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2011/04/04/mulher-ve-execucao-em-cemiterio-denuncia-policiais-militares-em-sp-924157665.asp>
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