22 de jul. de 2011

“Os verdadeiros reis do calote”

Por Paulo Moreira Leite

Um dos mitos mais celebrados destes tempos de crise econômica européia envolve a população da Grécia.
É assim: como o país à beira da falência, abandonado por bancos alemães que se recusam a assumir suas responsabilidades por empréstimos levianos e abusivos, tornou-se conveniente apresentar os gregos como um povo com pouca disposição para o trabalho e muita vocação para tirar proveito da riqueza da Europa mais desenvolvida.  Em compensação, segue a mitologia, a população alemã teria uma cultura de austeridade e previdencia, de quem se dispõe a fazer sacrifícios indispensáveis para conseguir seu bem-estar.
Thomas Friedman, um dos mais badalados articulistas do New York Times, chegou a escrever outro dia que os gregos têm muito a aprender com os alemães, se quiserem tornar-se um país melhor, mais desenvolvido e equilibrado. Não faltam observadores que gostam de dizer que a população grega revela aquele comportamento acomodado de quem explora uma riqueza que caiu do céu — seja o petróleo, no caso de países que possuem imensas reservas, sejam os créditos baratos dos países desenvolvidos.
Pena que essa mitologia, que se encaixa perfeitamente com a necessidade de quem precisa dar legitimidade a um projeto que irá submeter uma das populações mais pobres da Europa a um programa de sacrifícios dolorosos e questionáveis, não tenha apoio na realidade. A experiencia concreta das nações ensina que não é justo falar em povos trabalhadores ou acomodados, previdentes ou temerários — mas avaliar as condições materiais em que tentam se desenvolver e melhorar de vida.
Ao longo do século XX  foram justamente os governos alemães que deram sucessivos calotes financeiros em outros países, recusaram-se a honrar os acordos firmados e exibiram que a população de outras nações fizesse sacrifícios.
Quem nos ajuda a lembrar essa realidade é a revista alemã Der Spiegel, a mais respeiada do país, ao publicar uma entrevista com um historiador de economia chamado Albrecht Ritschl. Relembrando difíceis momentos do século XX, Ritschl afirma: “Durante o último século, a Alemanha foi à falencia três vezes.” O professor explica :  “a Alemanha Federal deve sua estabilidade financeira e seu status de boa aluna da Europa aos Estados Unidos que, depois da Primeira Guerra Mundial, e também depois da segunda, renunciou a somas consideráveis.”

Ritschl lembra que a própria Grécia encontra-se entre os países chamados a auxiliar a propria Alemanha a recuperar-se e que arcou com uma parte do prejuizo — o que não deixa de ser uma ironia. Por varios anos a Alemanha Federal recusou-se a honrar indenizações acertadas com países que foram ocupados durante a Segunda Guerra — entre eles a própria Grécia.  Os alemães só quitaram boa parte de suas dívidas na última década do século passado.
O professor refere-se a momentos conhecidos da história, que muitas pessoas consideram incômodo recordar nos dias de hoje.
Entre 1924 e 1929, com o país devastado pela Primeira Guerra Mundial, a Republica de Weimar sobrevivia de crédito e chegou até a emprestar dos Estados Unidos aquele dinheiro que necessitava para pagar as reparações da Primeira Guerra Mundial, construindo uma pirâmide financeira que afundou na crise de 1931, lembra o professor — recordando aqueles momentos que foram decisivos para o colapso do regime democrático e ascenção do nazismo que levou Adolf Hitler ao poder dois anos mais tarde.
“Os desgastes foram consideráveis nos Estados Unidos e tiveram um efeito devastador sobre a economia mundial. Produziu-se a mesma coisa depois da Segunda Guerra Mundial. “Mas os Estados Unidos garantiram que a Alemanha não fosse vítima de reparações exorbitantes.” Para o professor, essa atitude “é que salvou a Alemanha e foi o fundamento do milagre econômico que teve início nos anos 1950.”
O depoimento do professor tem a utilidade de desmontar ideologias que só tem a utilidade de proteger interesses que não gostam de se exibir à luz do dia.
Num lance de moralismo desinformado, procura-se culpar a população grega — e também a portuguesa, espanhola, irlandesa, quem sabe italiana — por uma situação que envolve um ambiente economico muito maior.  Em busca de mercados para seus investimentos, os bancos alemães montaram esquemas financeiros levianos junto a clientes que nem sempre tinham todas condições de honrar seus compromissos.
A irracionalidade da economia mercado costuma pregar peças e armadilhas nas populações do mundo inteiro, como a população americana descobriu em 1929 e 2008. A atitude de deixar os países quebraram não é apenas injusta mas também é irresponsável — como revela a própria história recente de sucesso da economia alemã. Se não tivesse recebido o tratamento que hoje rejeita à população pobre da Europa, a Alemanha Federal não teria se recuperado de duas tragédias economicas sucessivas.

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