31 de jul. de 2011

Carolina de Jesus e Estamira: mulheres, negras e brasileiras

Por PAULO MOREIRA LEITE

mulheres01.jpgO único filme obrigatório de 2006 é Estamira, impressionante depoimento de uma senhora que sobrevive num lixão do Rio de Janeiro. Estamira é um soco no estômago: choca pelo que tem de novo e também pelo que tem de antigo. Em 1958, um jovem repórter, Audálio Dantas, decidiu conhecer de perto uma favela de São Paulo, para retratar um cotidiano que poucos conheciam, na época. Audálio descobriu Carolina de Jesus, personagem que virou reportagem, depois livro e peça de teatro e, até morrer, foi um desses símbolos eternos da desigualdade brasileira.
Há uma semelhança óbvia entre Estamira e Carolina de Jesus. Ambas são mulheres, negras e miseráveis. Há diferenças notáveis, também. Aos olhos de hoje, a pobreza de Carolina de Jesus era uma realidade quase poética, em seus barracos de madeira e uma cidade que ficava genuinamente comovida com sua infelicidade. O retrato de Carolina de Jesus desenhava uma tragédia social que era chocante porque parecia passageira e fácil de ser consertada. Era um Brasil otimista e generoso que olhava para ela, apesar de tudo. A miséria de Estamira é mais sofrida e repulsiva. Se a primeira catava papel, a segunda vai direto ao lixo em busca de detritos. O olhar que mostra Estamira é pessimista, derrotado. Carolina de Jesus foi saudada de modo generoso, com uma certa culpa. Estamira é vista com temor, assombro — e medo. Se o país que acolheu Carolina de Jesus acreditava-se solidário, o Brasil de Estamira perdeu a vergonha do próprio egoísmo.
A pedido do blogue, Audálio Dantas foi ver o Estamira. Consultou seus arquivos sobre Carolina de Jesus. Ele nos enviou as fotos da própria Carolina de Jesus. Uma das fotos mostra a atriz Ruth de Souza, representando a personagem em “O Quarto de Despejo,” encenada em 1961. A última foto é do próprio Audálio na favela, conversando com Carolina de Jesus. Ele também é o autor do texto que publicamos a seguir, e que serve de instrumento para nossa reflexão:

“Em uma sala – o Cine Bombril – em São Paulo, assisti um documentário tão bom quanto perturbador: “Estamira”. Realizado por Marcos Prado, o filme conta a história de uma mulher que sobrevive dos restos que consegue amealhar num lixão do Rio de Janeiro.
O título do filme é o nome dela, um nome raro, estranho, forte – Estamira. O cenário, uma pegajosa montanha de lixo, é o lugar dela. Um lugar para onde são mandados os restos da cidade.
Sobre os restos, a presença de Estamira, imponente como se aquilo fosse um pedestal.
Ela sentencia: “Isso aqui é o resto, mas também é o descuido”. Ela quer dizer que no meio do muito que não serve, pelo menos para quem joga fora, sempre sobra alguma coisa descartada por descuido. Pode ser uma lata de conserva (quem, nesse lugar, se dará ao cuidado de conferir validade?), um a melancia, um maço de verduras, um brinquedo, até um livro.
Estamira faz, ali, minuciosa garimpagem. E disso vive e por isso proclama que aquele é o melhor lugar do mundo para se viver.
Estamira delira e o filme de Marcos Prado é o alto-falante que espalha a sua voz, o discurso que ela faz do alto da montanha de lixo. Um estranho e perturbador sermão, de negação de Deus, porque, para ela, o concreto está ali, sob seus pés. “Deus é criado pelo homem, é o poder ao contrário”.
Marcos Prado expõe, com grandeza, em belas e densas imagens, o delírio de Estamira. O filme é Estamira e sua verdade, sua voz que paira sobre o caos do lixo. É um depoimento, um testemunho.
Por ser tudo isto, muita gente viu no documentário forte semelhança com a história de Carolina Maria de Jesus, outra mulher que viveu do lixo, dos restos, dos descuidos. De fato, há semelhanças, mas a história é outra, e essa eu posso contar, porque dela participei.
Se Estamira, que aceitava o mundo do lixo, onde, para ela, não há “escravos disfarçados de libertos”, Carolina abominava a favela, onde se sentia escrava da miséria.
mulheres02.jpgEstamira e Carolina percorreram praticamente os mesmos caminhos: ambas vieram do fundo do Brasil, uma de Goiás, outra de Minas, do abandono rural para o urbano, em busca, talvez, da salvação. Encontraram o lixo e sobre ele, delirantes, proclamaram o seu protesto. Mas cada qual fez isso de seu jeito, arrancando o protesto do mais fundo da perturbação mental. Da loucura que, corajosa e dignamente, Marcos Prado expõe em seu belo filme.
Conheci Carolina de Jesus numa favela, num tempo em que as favelas, além daquelas que avançavam pelos morros do Rio de Janeiro, ainda eram poucas.
A favela do Canindé, onde Carolina vivia, era uma novidade na beira do rio Tietê, em 1958. Toda a cidade de São Paulo não tinha, na época, muito mais que 50 mil favelados. Então, a favela do Canindé, uma das que se aproximavam do centro da cidade, chamava a atenção. Entre outras coisas, por incomodar os vizinhos.
A favela era, assim, um assunto novo, na época. Bolei uma pauta, logo aceita pelo chefe de reportagem da Folha da Noite, um vespertino do grupo Folhas, onde eu trabalhava. A idéia era “viver” uma semana na favela, ver como era aquilo “por dentro”. Parti para a missão com o sentimento mais ou menos comum aos jovens repórteres, que é o de que podem mudar o mundo.
Do mundo não mudei nada, claro, mas a história que trouxe de dentro da favela espantou muita gente, incomodou, pelo menos. A história que eu buscava na favela já estava escrita com furor, revolta e às vezes até com lirismo, em mais de vinte cadernos encardidos, pela favelada Carolina Maria de Jesus. Era um diário em que ela contava a sua e a miséria dos demais que ali viviam.
Ao contrário do discurso gritado a plenos pulmões por Estamira, Carolina ia escrevendo, tecendo amargura e revolta em cadernos que, como o demais que lhe garantia a sobrevivência precária, encontrava no lixo.
O lixo de Carolina era diferente do lixo de Estamira. Não era um lixão, aquela montanha lá do Rio de Janeiro, mas o lixo espalhado pelas ruas. Às vezes, um pedaço de pão, um pacote de bolacha. Vivia, principalmente, da venda do papel catado. Só quando esse lixo escasseava, ela se aventurava até um lixão que ficava perto do Tietê e que se chamava Lixão, mesmo.
mulheres03.jpgMas ao contrário de Estamira, que proclamava o lixão como o melhor lugar de se viver, Carolina abominava o lugar ao qual só ia por extrema necessidade.
O Lixão foi o lugar onde, um dia, morreu um menino chamado Dinho por que, não resistindo à fome, catou um pedaço de carne estragada, assou, ali mesmo comeu e ali mesmo morreu.
Tudo isso Carolina registrava em seu diário, com a força de quem conta a verdade.
Em apenas um dos cadernos, iniciado em l955, encontrei material suficiente para a reportagem que a Folha da Noite publicou em página inteira. O meu projeto de escrever uma reportagem que mostrasse a favela “por dentro” terminava ali. De meu, na reportagem, só o texto de abertura, de introdução ao tema que ficou por conta de Carolina. A reportagem reproduzia trechos de seu diário.
Repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.
Com pouco tempo de escola, apenas dois anos do primário, em Sacramento, Minas Gerais, Carolina podia tropeçar na ortografia, escorregar na concordância e na pontuação, mas construía uma narrativa forte, densa, um retrato sem retoque da dura vida favelada. A fome, personagem principal, aparecia no texto com uma freqüência irritante, inarredável. Tinha até cor, na escrita de Carolina. As coisas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do insuportável. A fome era amarela.
Em 1959, quando me transferi para a revista O Cruzeiro, na qual publiquei uma segunda reportagem sobre o diário de Carolina. A revista era, então, a mais importante do Pais. A repercussão foi grande e, no ano seguinte, o diário saiu em livro – Quarto de Despejo – que, em pouco mais de uma semana teve a sua primeira edição, de 10 mil exemplares, esgotada. O título foi extraído de uma frase do diário: “A favela é o quarto de despejo da cidade”.
Fui o responsável pela compilação do texto. Do diário foram extraídos os trechos que considerei mais significativos, mas sem lhes alterar a forma. A repetição da rotina, da miséria da favela, seria exaustiva. Aqui e ali mexi na pontuação, assim como na grafia e na acentuação de algumas palavras, quando isso se tornava necessário a uma melhor compreensão do texto. E foi só.
O sucesso do livro transpôs as fronteiras, chegou a dezenas de países, com o livro traduzido em treze idiomas. Os mais importantes jornais e revistas do mundo trataram do assunto. Entre outros, Le Monde, Time, Life. A mais importante revista francesa, Paris Match, publicou matéria de mais de dez páginas. Escritores importantes, como Alberto Moravia, que escreveu o prefácio da edição italiana, trataram do assunto.
O sucesso do livro foi também, claro, o sucesso de sua autora, transformada de um dia para outro numa espécie de Cinderela. Do borralho da favela foi para uma casa que comprou no meio de gente de classe média. Muitos se incomodaram com a presença daquela negra alta, ex-favelada que brilhava sob as luzes da cidade.
Carolina tentou um retorno ao mundo rural. Comprou um sitiozinho em Parelheiros e lá foi viver. Com o tempo, o dinheiro dos direitos autorais (apareceu muita gente em busca de “auxílio”) foi escasseando. Algumas vezes chegou a dizer que preferia viver na favela. Carolina morreu em 1977, aos 68 anos.
O impacto de Quarto de Despejo foi além das discussões sobre o texto que muitos consideravam impossível ter sido escrito por aquela negra. O problema da favela foi discutido, estudantes fundaram o MUD – Movimento Universitário de Desfavelamento, a favela do Canindé desapareceu. Parecia, até, que se daria um jeito na miséria.
Passados mais de quarenta anos do impacto do livro, muita coisa mudou no País. São Paulo tem outra cara, cresceu para muito além dos limites da beira do Tietê, onde existiu a favela revelada por Carolina de Jesus, hoje multiplicada em centenas de outras.
Os lixões também se multiplicaram.”

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