11 de abr. de 2011

O financista, o consultor e a "pessoa"

Da Revista Época via Liuis Nassif
ÉPOCA revela os segredos dos e-mails de Roberto Amaral, o consultor que trabalhou para o Opportunity, de Daniel Dantas, durante o governo FHC
Wálter Nunes e Guilherme Evelin
Daniel Aratangy/revista Joyce Pascowitch
O CONSULTOR
l foi executivo da empreiteira Andrade Gutierrez por 30 anos. Ali, aprendeu a trafegar entre os políticos e amealhou contatos que mais tarde seriam mobilizados em favor de seus clientes
Entre maio e junho de 2002, o advogado carioca André Leal Faoro viveu o dilema de deixar a família e trocar as delícias do Rio de Janeiro pela aridez de Brasília e por um cargo na administração pública federal. Faoro fora convidado para assumir a procuradoria-geral da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A proposta fora feita pelo economista Luís Guilherme Schymura, que substituiu Renato Guerreiro, o primeiro presidente da agência. Pelo convite, Faoro entraria no lugar do mineiro Antônio Bedran e seria responsável pela preparação dos pareceres jurídicos e pela representação na Justiça da agência reguladora do setor de telecomunicações. Mas o convite acabou não sendo realizado formalmente. Há duas semanas, num restaurante no centro do Rio de Janeiro, Faoro rememorou as circunstâncias do convite e lembrou que Schymura nunca lhe explicou por que a proposta não fora adiante.

O episódio parece apenas um lance trivial na rotina das substituições na burocracia brasiliense. Mas, enquanto André Faoro ruminava o convite de Schymura, uma poderosa rede de influências foi mobilizada para evitar sua nomeação. Na linha de frente dessa operação, estava um dos personagens mais ativos e menos conhecidos da história recente da política brasileira: o paulista Roberto Figueiredo do Amaral. Por 30 anos, Amaral trabalhara como executivo da construtora Andrade Gutierrez, em São Paulo. Como diretor da empreiteira, desfrutara o convívio dos mais influentes políticos paulistas e fizera história por sua desenvoltura no opaco mundo das empreiteiras e suas tratativas em busca de contratos de obras públicas. Paulo César Farias, o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, considerava Amaral “um mestre”. Sérgio Motta, ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso, seu amigo, o chamava, em tom de brincadeira, de “gênio do mal”.
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Ao Planalto Roberto Amaral enviava mensagens ao endereço eletrônico dos ajudantes de ordens do presidente FHC.
No dia 8 de março de 2002, ele enviou o e-mail ao lado. Uma semana antes, a PF fizera uma busca e apreensão no escritório da Lunis, de Jorge Murad, marido de Roseana Sarney. FHC diz não ter recebido esses e-mails

O caso Anatel
Os e-mails relativos à ação para manter Antônio Bedran na procuradoria da agência
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No começo dos anos 2000, Amaral atuava como consultor do Opportunity, marca que reúne os fundos de investimentos comandados pelo financista baiano Daniel Dantas. Na ocasião, Dantas se tornara o protagonista da maior disputa societária da história recente do capitalismo no Brasil. Ele brigava com fundos de pensão e sócios estrangeiros pelo controle de empresas de telefonia privatizadas pelo governo FHC. Dantas buscava decisões favoráveis das autoridades em Brasília e arregimentara os serviços de Amaral para que ele o auxiliasse em sua contenda bilionária . “Eu precisava de alguém que me explicasse como funciona o Brasil do poder, e o Roberto era o homem ideal”, disse Dantas numa entrevista recente publicada na revista Piauí. Essas lições sobre o funcionamento do Brasil do poder e o estilo e a estratégia de Amaral ficam evidentes numa série de e-mails obtidos por ÉPOCA, que ele enviou e receb
A correspondência eletrônica foi apreendida por agentes da Polícia Federal em dezembro de 2008, quando eles vasculharam os endereços de Amaral como parte da Operação Satiagraha, a mais rumorosa e polêmica ação da história recente da PF. Na casa de Amaral, os federais acharam um disco rígido de computador, que guardava e-mails numa quantidade suficiente para encher dez CDs. Tais e-mails serviram de prova em uma denúncia do Ministério Público, aceita pela Justiça em julho de 2009. Segundo a PF, que atestou a autenticidade dos e-mails por meio de uma perícia técnica, a correspondência registra a comunicação entre Amaral e Dantas (Dantas nega isso). E também inclui, de acordo com a PF, mensagens enviadas por Amaral a próceres da República e aos ajudantes de ordens do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Por envolver autoridades com foro privilegiado, os e-mails encontram-se, desde 2009, sob a análise do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que estuda se eles contêm indícios que justifiquem a abertura de uma investigação policial.
Desencadeada em 2008, para investigar acusações de crimes financeiros contra Dantas e o Opportunity, a Operação Satiagraha gerou um sem-número de controvérsias. Dantas foi preso duas vezes – ambas por ordem do então juiz federal Fausto De Sanctis, de São Paulo – e solto duas vezes – ambas por decisão do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes. O prende e solta causou uma crise sem precedentes no Judiciário brasileiro. O comandante da operação na ocasião, delegado Protógenes Queiroz, recorreu a métodos ilegais de operação (usou, por exemplo, agentes da Agência Brasileira de Inteligência para fazer escutas telefônicas à revelia da direção da PF), foi afastado do caso e condenado, em novembro do ano passado, pela Justiça Federal à pena de prisão por crime de violação de sigilo funcional e fraude processual. Como consequência desses métodos, diversas provas recolhidas na investigação foram questionadas pelos réus.
Quando os agentes vasculharam a casa de Amaral e apreenderam os e-mails, a Satiagraha já estava sob o novo comando, do delegado Ricardo Saadi. Sua equipe extraiu diversas novas conclusões que embasaram a denúncia apresentada pelo Ministério Público – e depois aceita pelo próprio juiz De Sanctis. Uma das dificuldades da PF, ao analisar os e-mails, foi decifrar seus remetentes, destinatários e conteúdos. De acordo com a denúncia, a PF concluiu que Dantas e Amaral, em suas comunicações, recorriam a vários endereços eletrônicos, codinomes secretos e frases elípticas, na tentativa de evitar ser descobertos. “Com o temor de ser identificados em suas mensagens, Roberto Amaral e Daniel Valente Dantas se tratavam por outros nomes ou por siglas, sendo que o primeiro, na maioria das mensagens eletrônicas, era tratado como “Rogério”, ou “Rogério Antar”, e o segundo por “DD”, “OVS”, ou “Olhos Verdes Sensuais”, escreveu o procurador Rodrigo de Grandis na denúncia. Segundo o texto de De Grandis, Amaral usava os endereços amaralbr@terra.esrdo@uol.com.br e lexus3333@hotmail.compara suas mensagens. Dantas, de acordo com a PF, usava principalmente o e-mail sjward@ attglobalnet. Por meio de nota enviada por sua assessoria, Dantas afirmou que “não se correspondeu diretamente com Roberto Amaral”. O advogado José Luís de Oliveira Lima, que defende Amaral, disse que seu cliente não comentaria o conteúdo dos e-mails, porque a Satiagraha teria sido “produzida de forma ilegal, desprezando princípios processuais e constitucionais”. No momento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute a legalidade das provas obtidas pela PF na Satiagraha.
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Em 2002, Dantas dedicava um lugar especial de suas atenções à Anatel. Por lei, qualquer mudança no controle das empresas de telefonia precisava ser previamente aprovada pela agência. Ter aliados – e, sobretudo, não ter inimigos – em posições influentes na Anatel era um trunfo para quem disputava o comando de empresas com faturamento na casa dos bilhões de reais. Na Anatel, a procuradoria-geral era um local estratégico para Dantas. O motivo era uma briga que ele travava com os fundos de pensão de empresas estatais e com a empresa canadense TIW pelo controle da Telemig Celular e da Amazônia Celular, duas empresas privatizadas pelo governo FHC em 1998.
O litígio entre Opportunity e TIW começara depois do leilão de privatização. Os canadenses haviam desembolsado mais de US$ 380 milhões na compra de duas empresas, acreditando que teriam participação em sua gestão. Após o leilão, descobriram que, apesar de ter 49% das ações, não teriam ingerência nas decisões das companhias, em virtude de uma complexa estrutura societária atribuída a Dantas. Apesar de deter menos de 1% do capital total, era o Opportunity que controlava as empresas, por intermédio de outra empresa chamada Newtel, cujos sócios eram o Opportunity e os fundos de pensão, mas não os canadenses. No meio da disputa entre os canadenses e o Opportunity, os principais fundos de pensão mudaram de direção e se aliaram à TIW. Eles queriam dissolver a Newtel e destituir o Opportunity do comando das empresas. Iniciou-se em 2000 uma batalha na Justiça Estadual do Rio de Janeiro que mobilizou alguns dos principais escritórios de advocacia do país e gerou mais de 30 ações. No meio desse imbróglio, a TIW e os fundos conseguiram algumas vitórias parciais. Uma liminar da Justiça do Rio lhes assegurava, temporariamente, o comando do conselho de administração da empresa holding da Telemig.
No dia 4 de abril de 2002, a Anatel e a Advocacia-Geral da União (AGU) deram entrada a uma petição, na 31a Vara Cível da Justiça Estadual do Rio, principal foro onde TIW, fundos e Opportunity terçavam armas. Na petição, a Anatel e a AGU requeriam a admissão como assistentes do Opportunity na questão. Ao ser admitidas no caso, o processo seria transferido automaticamente da Justiça Estadual do Rio para a Justiça Federal. Elas afirmavam que a dissolução da Newtel, pretendida pela TIW e pelos fundos de pensão, provocaria mudança no controle acionário das empresas – e que isso só poderia ser feito com a anuência prévia da agência. Argumentavam também que a dissolução da empresa poderia provocar desordem administrativa, com prejuízo na prestação de serviços. “O Conselho Diretor na Anatel decidira sobre as participações societárias da Newtel em empresas de telecomunicações. A procuradoria-geral da agência ingressou em juízo para sustentar a eficácia da decisão administrativa. Como a Anatel é uma autarquia pública federal, o processo, por força de lei, tramita na Justiça Federal”, disse Bedran, em resposta a ÉPOCA na semana passada. Ele permaneceu na Anatel até o final do 2010, no posto de conselheiro. Embora, na disputa judicial em torno da Telemig, a medida adotada pela Anatel tenha favorecido o Opportunity, não há, na correspondência recolhida pela PF, nenhuma evidência de que Bedran tenha sido movido em suas decisões por algo além de suas convicções ou do interesse público.
A petição da Anatel e da AGU iniciara uma discussão sobre que esfera judicial tinha competência para julgar a disputa – a Justiça do Rio ou a Federal. No dia 29 de maio de 2002, Amaral recebeu um e-mail do endereçosjward@attglobal.net, com a informação de que estava em curso uma “articulação para a substituição de Antônio Bedran por André Faoro, advogado da TIW, na Anatel”. Entre 1999 e 2004, André, filho de Raymundo Faoro, célebre presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) durante a ditadura militar, atuara como advogado do escritório Tozzini Freire, do Rio, contratado pelos canadenses da TIW. A nomeação de Faoro para o lugar de Bedran representava, portanto, uma ameaça aos interesses do Opportunity na disputa, uma vez que ele tinha laços próximos com os canadenses. Do ponto de vista do interesse público, havia também um argumento forte: não seria correto nomear um antigo advogado da TIW para a procuradoria-geral da Anatel, em meio a uma disputa em que os canadenses eram uma das partes – e a agência reguladora teria influência decisiva. “Sei que é urgente”, respondeu Amaral. “Vou entrar no assunto agora, no mais alto nível. Pare qualquer articulação que envolva este assunto.”
A sequência de mensagens trocadas por Amaral, entre os dias 29 e 30 de maio de 2002, mostra que sua providência, depois de descobrir que Faoro fora convidado para a Anatel, foi enviar um fax a alguém a quem ele se refere como “a pessoa”. A leitura das mensagens sugere que tal fax teria sido enviado. Em sua versão final, “mais incisiva”, segundo a descrição feita num e-mail enviado por Amaral, ele seguia com uma advertência contra a nomeação de Faoro para o lugar de Bedran: “Vão te contar mil histórias, mas é evidente que André Faoro não pode ser nomeado advogado da Anatel, no lugar de Antônio Bedran. Foi advogado dos canadenses contra o Opportunity. É evidente o conflito de interesses”.
No dia 4 de junho de 2002, Amaral comunicou a OVS, rótulo por meio do qual os programas de correio eletrônico identificam o endereço sjward@attglobal.net, que tivera uma conversa por telefone à 1h30 da Espanha, país onde ele mantinha uma residência na cidade da Marbella. Amaral iniciou seu e-mail com uma mensagem curta, de estilo telegráfico: “PESSOA AGORA 1.30 H SPAIN”. Desdobrou então o conteúdo de sua conversa em quatro tópicos. No primeiro, escreveu: “André não irá. Bedran ficará”.
Quem seria essa pessoa, a quem o e-mail de Amaral atribui a obtenção de informação tão estratégica? Esse é um mistério não esclarecido. Com base em e-mails enviados por Amaral aos ajudantes de ordens da Presidência da República, os investigadores da PF e os procuradores do Ministério Público levantam a suspeita de que a “pessoa” seria um código para se referir ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
No material apreendido na casa de Amaral, há vários e-mails dirigidos aos endereços eletrônicos de dois militares que davam expediente na antessala de FHC: o major da Aeronáutica Carlos Eduardo Alves Silva (carlosedu@planalto.gov.br) e o capitão de fragata da Marinha Marcos Jorge Matusevicius (MarcosJM@planalto.gov.brmjmat@ig.com.brmarcosjm@sagres.com.br). Os dois são citados no livro A arte da política, de FHC. Ali, FHC descreve a importância dos ajudantes de ordens no dia a dia da Presidência. “Quem não conhece os meandros do poder não tem ideia o quanto é de vital importância contar com esse pelotão quase anônimo. É ele quem apara arestas, ajuda a implementar decisões e, principalmente, aguenta as pressões de todos que desejam ter acesso ao presidente”, escreveu FHC.
Os e-mails de Amaral sugerem que ele recorria aos endereços eletrônicos dos ajudantes de ordens para remeter mensagens dirigidas diretamente a FHC. No dia 8 de março de 2002, Amaral enviou para o endereço do major Carlos Eduardo um e-mail com o título: “Vc já está na história”. O texto é direto: “Mando-lhe um forte abraço. A era FHC já está na história. Infelizmente, até o final do governo será preciso administrar os pequenos canalhas. Vc terá páginas e páginas na história. Sarney, uma anotação como o pai de um estranho plano econômico, que mandava delegado federal laçar bois no pasto, conduzindo o país à moratória com uma inflação incontrolável”.
Matusevicius e Carlos Eduardo receberam outros e-mails que reforçam a suspeita de que a “pessoa” seja FHC. Em 12 de maio de 2002, às 2h07, Amaral enviou uma mensagem a Matusevicius em que anexou a capa da edição do dia anterior do jornal Correio Braziliense. Cinco minutos depois, Amaral reencaminhou a OVS o e-mail endereçado a Matusevicius. Escreveu: “DD: email à pessoa”. Há registro também de e-mails enviados por Amaral a Matusevicius em que ele faz uma consulta sobre a renovação de seu contrato com Dantas: “Estou para renovar contrato com DD. Pergunto, em caráter pessoal e baseado em uma amizade de mais de 15 anos, se existe alguma coisa que vc ache que eu deva saber”.
Na semana passada, a reportagem de ÉPOCA mostrou os e-mails enviados por Amaral a Matusevicius, que atualmente trabalha como assessor da diretoria de praticagem do Porto de Santos. Ele reconheceu os endereços eletrônicos como seus. Matusevicius também reconheceu que era sua uma mensagem enviada a Amaral a partir de seu e-mail oficial no Palácio do Planalto, em que ele fornecia seu antigo endereço residencial em Brasília como destino para correspondências. Todos os e-mails enviados para o presidente, segundo Matusevicius, eram endereçados aos ajudantes de ordens. “Não existe um e-mail do presidente. Então toda vez que alguém queria mandar algum complemento de informação, algum documento, nós entregávamos nossos cartões”, disse. “A gente ali servia como intermediário no trâmite de documentação.” Matusevicius afirmou, porém, que não se lembrava de Amaral. Perguntado sobre como os ajudantes de ordens repassavam os recados recebidos por e-mail, disse que havia vários despachos diários com FHC. “O ajudante de ordens acompanha o presidente durante todo o seu dia. Chegou documento, você entrega o documento, e o presidente despacha para o pessoal da Casa Civil.” A reportagem de ÉPOCA também falou com o coronel Carlos Eduardo Silva, hoje adido de defesa da Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Ele reconheceu como seu o endereço usado nos e-mails de Amaral, mas afirmou não se lembrar de Amaral nem de receber e-mails destinados a FHC.
O ex-presidente Fernando Henrique também conversou com ÉPOCA. Ele afirmou conhecer Amaral e disse que não tem “intimidade maior com ele”. “Eu não recebi e-mail nenhum do Roberto Amaral na Presidência”, disse FHC. “Ele pode ter mandado para os meus ajudantes de ordens, mas eu nunca recebi nem respondi. Não me lembro também de ter recebido qualquer fax dele. Eu não usava esse instrumento de trabalho.” FHC disse também que Dantas não precisaria de Amaral para falar com ele. “O Daniel Dantas falou comigo. Ele tinha lá suas demandas, como todo mundo. Quando se está na Presidência, o que mais se ouve é pedido. É pressão, porque o pessoal acha que presidente da República resolve, mas não resolve nada.” 

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