Por Carlos Melo no O Estado de S.Paulo
O governo Dilma notabiliza-se por negar hipóteses e afastar neuroses vinculadas à desconfiança ancestral do que poderia ser "um governo do PT de verdade"; afinal, ao longo do tempo, o voluntarismo e a pirotecnia retórica do partido deram margem a todo tipo de fantasias. Mas para quem se cercou de análises isentas não há surpresas: não é nem poderia ser um governo de malucos; o espaço para aventura é exíguo e os limites do possível, estreitíssimos. A marca do governo está antes no comedimento do que na ousadia.
Ainda assim, ultrapassados os primeiros meses, chega o tempo de superar impressões superficiais e compreender autenticamente esse governo. Em estilo, Dilma nada tem que ver com Lula. A imprensa faz comparações, mas, além de estimular a bile do ex-presidente, pouco acrescenta. As condições gerais do mundo, da economia, do governo e até os atores mudaram bastante. Mesmo Lula, num imaginário terceiro mandato, estaria recorrendo à "metamorfose ambulante" para justificar mudanças de estratégia.
No mundo em que Dilma governa, as relações entre política e economia são distintas. Desde 2008 os pilares ideológicos da liberdade que o mercado julgava ter estão sendo minados. Fragilizado econômica e politicamente pela "exuberância irracional" que produziu, o mercado pagará agora em perda de autonomia e influência, ao menos até que o ciclo se esgote (se é que se esgotará) e fiquem, então, os Estados novamente tutelados pelo cálculo econômico.
Fundamentalistas podem não se conformar e até reagir, instabilidades e incertezas não lhes agradam. Não agradam a ninguém. Mas as lições e as normas dos livros-texto serão questionadas. Nova realidade se impõe: a política recriou asas e, neste momento, tem as rédeas. O processo só não é mais agudo porque a situação fiscal europeia serviu de alerta e freio.
Para governos e políticos, todavia, 2008 foi uma janela de oportunidade que lhes permite, agora, alterar métodos, além do prazer de medir forças. Busca-se retomar o protagonismo perdido, testar elasticidades, tensionar sem romper, estabelecer novos limites. O governo Dilma desfruta, assim, autonomia incomparavelmente maior do que Lula, na maior parte de seus mandatos. E, até porque os tempos são outros, além disso, a presidente exerce o mando de modo mais discreto, porém mais incisivo e menos conciliador que seu antecessor.
Desse modo, ao lado dessa mudança mais geral, uma compreensão mais autêntica do governo exige um olhar também sobre sua composição política estrutural. A variedade e a heterogeneidade de grupos e interesses econômicos ali alojados compreende um todo contraditório, formado por fundos de pensão, bancos, agronegócio, empreiteiras, construtoras, exportadores, parceiros econômicos novos e antigos, centrais sindicais, movimentos populares, funcionalismo e uma miríade de partidos políticos acéfalos e desgastados.
Não há força hegemônica que se imponha sobre as demais, como, no passado, o poder do mercado financeiro definia regras, métodos, instrumentos e até personagens, como Armínio Fraga e Henrique Meirelles. O que é um problema, pois tudo fica mais opaco e indefinido, a volatilidade tende a aumentar e faz o governo caminhar de sombrinha na corda bamba de pressões opostas, de consensos rasos, como "o maior crescimento com a menor inflação". Frase fácil, quase um sofisma; equação de difícil equilíbrio. Embora tão desejável quanto um paraíso de ninfas, é também tão romântica quanto a paz mundial: ninguém é contra. O diabo é fazê-lo diante de dilemas falsos ou verdadeiros: crescer menos e controlar a inflação ou deixar rolar o crescimento, nem que seja à custa de "um pouquinho de inflação"? O câmbio é algoz da competitividade ou bastião da estabilidade? Gastar "menos" ou apenas gastar "melhor"? Ajuste fiscal, cortes de investimentos ou redução dos custos com dívida e reservas?
Tão amplo e variado é o bloco no poder deste governo que as respostas dependem menos de convicção que de viabilidade, coragem para fazer escolhas, habilidade para desgostar parceiros e atenuar consequências. Modelos clássicos como instrumentos únicos parecem viver seu esgotamento, se não prático, ao menos político. A elevação de juros e a apreciação da moeda, por exemplo, deixam de ser as primeiras e certamente não mais serão as únicas ferramentas de combate à inflação.
Num ambiente em que a contribuição de cortes fiscais é ao mesmo tempo dolorosa e limitada, qual alternativa? A politicamente possível. E o possível nem sempre é o tecnicamente correto, o abstratamente desejável. O possível é o produto de um jogo de pressões, de um campo em disputa.
Esse produto, ainda em gestação, não se define por consenso, mas por arbitragens e, no limite, pela crise. Sua ausência e o vácuo criado em razão disso paralisam, ao mesmo tempo que incentivam experiências e/ou paliativos, que só se revelarão paliativos (se o forem) no médio prazo.
Daí as tais medidas macroprudenciais. Daí a escolha de um "Banco Central técnico", não alinhado. Daí a demora na definição de uma agenda reformista clara, viril e concreta. Daí a administração de interesses e contradições. Daí o esticar de cordas, os testes de elasticidade das resistências, a tentativa de harmonizar ou arbitrar diferenças. Daí uma presidente que se recolhe, mexe peças, estuda o tabuleiro. Joga xadrez e esquece o calor do futebol.
Foi-se o tempo de imposições, sejam do governo, sejam dos fortes. Ninguém mais é tão mais forte que os demais. Nesse conjunto de forças fragmentadas e diluídas, a política faz-se muito mais necessária. Ela, contudo, altera ritmos, tempos, movimentos. Exasperam-se os ansiosos. Certo ou errado? Não vem ao caso.
CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DO INSPER, É AUTOR DE "COLLOR, O ATOR E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS"
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