Cheguei hoje no Fórum Varella Barca e fui de imediato à 1ª Vara Criminal da Zona Norte onde minha primeira audiência do dia estava para começar. Tráfico de drogas era a acusação. A prisão do acusado era recente, ocorrida em janeiro de 2011.
Liguei meu computador, conversei com os funcionários, relembrei o processo, tomei meu primeiro café... Saí da sala de audiências e conversei com os familiares do acusado, que compareceram em peso, explicando tudo o que poderia acontecer naquele dia (ou quase tudo, como ficou claro depois).
Como todos os dias vem acontecendo, devido à desorganização do Estado na condução dos presos às audiências, a audiência demorou para começar.
Quando a escolta chegou, colocando o preso no banco dos réus, a primeira testemunha, o Policial que teria abordado o acusado, com ele apreendendo certa quantidade de droga, já estava posicionado para ser ouvido. O juiz iniciou a gravação e, de cara, perguntou:
- Amigo, aproveitando a chegada do acusado, o senhor o reconhece como a pessoa que estava comercializando drogas naquele dia?
O Policial inclinou-se sobre a mesa como que para olhar bem nos olhos do preso e, sem maiores considerações afirmou categoricamente:
- É ele sim, Excelência. Ele é conhecido nosso da região, já o abordamos diversas vezes. Ele estava com diversas trouxinhas de "maconha" e "crack". Trafica na rua com um comparsa. O apelido dele é "cabeça".
Satisfeito, o magistrado, por força do hábito, quis apenas reforçar: - Tem certeza?
- ABSOLUTA - respondeu convicto.
Ao meu lado, o preso se contorcia todo, aparentemente muito assustado. O promotor também estranhou a reação do preso.
Neste momento, o agente que conduzia o preso, quebrando o protocolo, berra:
- Alto lá!!! Pára tudo!!! Tá tudo errado!!!
O agente continou resmungando em linguajar próprio enquanto todos, estupefatos, ficamos nos entreolhando. A gravação continuou registrando a inusitada intervenção. O juiz quis continuar os questionamentos, mas a situação era insustentável. A audiência virou uma bagunça.
Antes que o juiz pudesse repreender o agente, ele saiu da sala, gritou por um colega e trouxe outro preso, um rapaz jovem, alto, magro e de pele muito clara.
O agente apontou para o preso que estava no banco dos réus, um homem negro, baixo e forte, e disse:
- Este aí é acusado de "121"!!! A audiência dele é na 3ª Vara!!! O preso desta audiência é este outro!!!
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O acusado da história verídica relatada acima - cujo apelido é "careca" e não "cabeça" - acabou sendo absolvido. Mas o inusitado e pitoresco "reconhecimento", que arrancou sorrisos de todos e deixou o Policial bastante constrangido, mostra como este tipo de prova é falho. O mais absurdo é que condenações baseadas unicamente no reconhecimento são muito comuns. E o pior: o reconhecimento é via de regra feito sem a observância das regras do Código de Processo Penal.
Sobre o tema, costumo tecer os argumentos abaixo, apontando as razões científicas para a cautela com este tipo de prova.
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O "reconhecimento" não seguiu o procedimento legalmente previsto pelo CPP:
Art. 226 CPP. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
A Polícia falhou em cuidar, na medida do possível, da “neutralidade psíquica” do depoente. Desta forma, aumentou, ao invés de reduzir um dos maiores fatores de distorção dos atos recognitivos, que leva a testemunha a, sobretudo num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar positivamente alguém (o chamado yes effect).
O cuidado do legislador na regulação do ato de reconhecimento evidencia a importância, a relevância prática para a formação da convicção probatória e a falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções.
Vale salientar que, por óbvio, um reconhecimento inválido impede que aquela testemunha, no futuro, venha a confiavelmente reconhecer novamente o acusado como autor daquele fato. Isto se dá porque, agora que a Polícia já identificou o acusado, mostrando-o à testemunha, sua memória não pode ser apagada, sendo impossível se saber se ela o reconhece do momento do fato ou da Delegacia.
Ademais, a credibilidade conferida ao reconhecimento positivo tem sido contrariada pelos inúmeros estudos que nos últimos anos têm vindo a ser realizados em diversos países. O reconhecimento é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos confiáveis, ainda que se tenha cumprido escrupulosamente o formalismo estabelecido na legislação. Tais trabalhos têm revelado:
a) Que a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, pois procura localizar a pessoa que mais semelhanças apresenta com o agente do crime por ela visualizado;
b) O fácil sugestionamento de que pode ser vítima a pessoa que deve realizar o reconhecimento, como através do comportamento da pessoa que orienta a diligência.
c) O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efetuada, segundo tais estudos, depende mais do comportamento corroborante do investigador e da confirmação da sua identificação por outras testemunhas, que da nitidez das suas recordações.
Assim sendo, não há como se confiar no reconhecimento realizado em desconformidade com o procedimento delineado no Código de Processo Penal.
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