De São Paulo
É pouco provável que um ato como o massacre de Realengo pudesse ser previsto, quanto mais evitado.
A perturbação mental que cercou a conduta, aliada a uma premeditação de larga antecedência, misto de loucura e método, insere o ato entre aqueles para o qual toda prevenção é insuficiente, todo cuidado, pouco.
No entanto, apesar de tenebrosos, tais acontecimentos têm a capacidade de iluminar dados de que já sabíamos, mas não com a contundência que a tristeza abrupta impõe à realidade.
O primeiro é a gravidade das consequências do preconceito, do qual o bullying escolar é apenas uma pequena etapa de aprendizado.
Diz a imprensa que ex-colegas do atirador se sentem hoje culpados pelo bullying que praticaram contra ele na escola. O garoto introvertido, feio, esquisito, calado, enfim, ridicularizado por aqueles que de alguma forma se sentem superiores, por qualidades que julgam ter.
Nada de estranho, todavia.
A exclusão infantil é um fenômeno extremamente comum nas escolas e funciona como um círculo vicioso: o aluno excluído vai sendo carimbado como um diferente, até que todos os demais se afastem dele, inclusive para que não recebam a mesma pecha.
É certo que devemos ensinar a nossos filhos que é a humanidade que nos conecta: o que temos de igual é muito mais relevante e precioso de que nossas pequenas diferenças.
Mas quando é que nessa sociedade individualista, competitiva, narcisista e acumuladora de riquezas a todo custo, fazemos valer noções como a igualdade?
As escolas, por sua vez, parecem pouco preocupadas em intervir nas situações que não se mostrem de todo incontroláveis. Seja para não perder alunos, seja por pura negligência, quando a vítima se resigna com o bullying, a omissão é a regra.
Lei da selva dentro ou fora dos muros, os incomodados que se mudem...
Outra questão candente que a tragédia nos alerta diz respeito ao desarmamento, estancado no meio do caminho pela derrota no referendo de 2005.
A maior parte da população entendeu à época que ter armas era um direito que não podia ser suprimido, ainda que a maior parte da população não o exerça e jamais irá exercê-lo.
Venceu a ideia de que os "homens de bem" tinham o direito de possuir armas, inclusive porque as leis não alcançavam os "criminosos", que não se conseguiria desarmar.
É o tipo da premissa que mais se afasta da conclusão, porque parte considerável das armas em mãos de criminosos é negociada legalmente, em sua origem.
A noção de que armas de nossos crimes são estrangeiras, e por isso a questão se resumiria a vigiar fronteiras, sucumbe à lógica e às estatísticas.
Estudo recente patrocinado pelo Ministério da Justiça concluiu que mais de 80% das armas apreendidas em crimes foram fabricadas em solo brasileiro - o que, aliás, até uma curta vivência nos fóruns permitiria descobrir.
A maior parte é apreendida com numerações suprimidas, justamente para ocultar a origem de prováveis roubos ou furtos anteriores de proprietários legítimos.
O que não estaria pensando hoje o dono da arma que, adquirida legalmente, acabou nas mãos do assassino?
É lógico que um psicopata seria capaz de matar com qualquer instrumento, se a posse de armas fosse mais restrita.
Mas o volume de crimes praticados com armas de fogo, que coloca o Brasil na liderança de estatísticas mundiais em números absolutos, mostra que os danos que sofremos estão muito além da insanidade de um atirador.
As armas não são instrumentos de liberdade: são fragmentos de repressão espalhados pela sociedade.
No descuido, matam crianças que com ela brincam; na ira, servem como soluções definitivas para conflitos banais; na ânsia da defesa, perde-se fácil para quem dela faz seu cotidiano.
Nas mãos dos cidadãos, infelizmente, as armas nem libertam nem salvam vidas.
As questões suscitadas pela tragédia nos levam a duas interessantes encruzilhadas da democracia, que costumam ser muito mal interpretadas nos dias que correm.
Punir o preconceito está longe de ser conduta antidemocrática.
Proibir a posse de armas de fogo não é um ato que cerceia a liberdade. A democracia é mais do que apenas a regra da maioria, embora dela não abra mão. Por outro lado, não se restringe a ser um espaço de tolerância de tudo que é intolerável.
A proteção da dignidade humana é a matriz das democracias modernas, que se reinventaram após o desastre do Holocausto, em grande parte construído no respeito à lei e à ordem. Como leis eram as que impunham o apartheid na África do Sul, a segregação racial nos Estados Unidos, ou o apedrejamento de adúlteras no Irã moderno.
Depois do nazismo, em especial, os Estados passaram a admitir que certos valores são irrenunciáveis, inalienáveis, imprescritíveis e, sobretudo, universais.
Nem a expressão que massacra, nem a arma que mutila devem ser considerados direitos tão fortes capazes de reduzir a dignidade humana a uma letra morta
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