Comentário: este é o conto que desregulamentou a economia brasileira para os financistas. Comprovou-se que estes ideólogos de mercado livre tinha interesses relevantes na financeirização da economia de países emergentes e do aumento da dívida em países ditos de primeiro mundo. E ainda tem gente que defende as decisões economicas da década de 1990.
por Luiz Gonzaga Belluzzo no Valor Econômico
O sempre instigante Eu& Fim de Semana publicado nas edições de sexta-feira
do Valor, ofereceu a seus leitores uma entrevista do economista Lawrence Summers.
Summers, entre outras proezas, ficou conhecido por declarações polêmicas.
Recomendou o incentivo à deslocalização de indústrias poluidoras para os países da
periferia. Reitor de Harvard, Summers decretou a incapacidade da inteligência feminina
em lidar com as complexidades das "hard sciences".
Observei Summers no café do pavilhão onde se realizava a reunião do Fórum
Mundial Davos, em 1993. Entre um gole de café e outro, Summers iniciou um sermão
aos circunstantes sobre políticas econômicas nos países em desenvolvimento. As lições
de Summers sucederam uma tertúlia sobre a economia mexicana que, segundo os
participantes da mesa, navegava de velas enfunadas rumo à prosperidade. Não faltaram
reverências e salamaleques ao então presidente Salinas de Gortari e a seu ministro da
Fazenda, Pedro Aspe.
Sentados na plateia, o professor Carlos Antonio Rocca e este locutor que vos
fala, entre estarrecidos e irritados, ouvíamos os julgamentos peremptórios que fluiam do
debate entre os sabidos da academia e financistas mais sabidos ainda. As opiniões iam
da celebração incondicional do modelo mexicano às referências derrisórias ao Brasil.
Digo estarrecidos porque, naquele momento, o México apresentava um déficit em
transações correntes de 8% do Produto Interno Bruto (PIB), déficit fiscal elevado e a
dolarização galopante de sua dívida interna, infestestada de Tesobonos.
Em dezembro de 1994, o México quebrou vítima de uma "parada súbita" e só
sobreviveu com o socorro do Tesouro Americano e do Fundo Monetário Internacional
(FMI), providência destinada a salvar os bancos de Tio Sam. Summers, então
subsecretário do Tesouro de Clinton capitaneou a operação de salvamento.
Não havia como escapar da impressão de que Summers era encarnação mais
acabada do personagem de Molière, o "idiot savant", cheio de si, como tantos outros
que se abrigam sob o manto hoje prestigioso dos estudos da economia. (Evito a
expressão ciência econômica para evitar que o ego já inflado dos sabichões sofra um
processo fatal de inchaço e implosão).
Pois Summers é um dos personagens centrais do imperdível documentário
"Inside Job" de Charles Ferguson que, na madrugada de ontem, levou o Oscar na sua
categoria. O título do filme foi traduzido para o português como "Trabalhos Internos" -
é lamentável a falta de imaginação do tradutor, que provavelmente não viu o filme.
"Inside Job" é uma expressão idiomática. Um amigo, mais versado do que eu no idioma
de Shakespeare, sugeriu "Trabalhos Promíscuos".
O documentário mostra que Summers faturou uma nota preta ao ministrar
palestras remuneradas pelos senhores do Universo sobre as maravilhas da
desregulamentação financeira. Entre suas idas e vindas ao governo, dedicava-se a
assessorar instituições financeiras mediante farta remuneração. Não sei se ele está no rol
de 19 economistas investigados no estudo do seu colega Gerald Epstein, da
Universidade de Massachusetts Amherst.
O estudo trata do conflito de interesses entre a atividade acadêmica, a ocupação
de funções no Estado e as atividades de consultoria, quando os personagens não
advertem a opinião pública a respeito de suas ocupações e pertinências. Essa confusão
de papéis está gerando um movimento entre os economistas americanos para a adoção
de um código de ética.
Não se trata de limitar as atividades profissionais dos economistas, mas sim de
tornar claro ao público que as opiniões podem estar viciadas e deformadas pela
infiltração de interesses estranhos à independência acadêmica e à função pública.
Enquanto secretário do Tesouro de Clinton, Lawrence Summers trabalhou
intensamente para a aprovação no Congresso dos Estados Unidos do Gramm-LeachBliley Act. Essa lei derrotou a legislação dos anos 1930, o Glass-Steagal Act, que
separava os bancos de depósito, os bancos de investimento, seguradoras e instituições
voltadas para o financiamento imobiliário e "fundeadas" na poupança das famílias.
Há uma livre e brutal concorrência. A expressão grande demais para falir
esconde mais do que revela
Os mercados financeiros contemporâneos lograram capturar os controles da
economia e do Estado, mediante o incrível aumento do seu poder social e político. As
transformações ocorridas no sistema financeiro desataram a livre e brutal concorrência
no capitalismo da grande empresa e das grandes instituições financeiras.
A expressão grande demais para falir esconde mais do que revela. Nos últimos
anos, a securitização e a alavancagem construíram uma teia de relações de débito e
crédito entre as grandes instituições espalhadas pelo mundo. Os bancos de investimento
e os demais bancos sombra aproximaram-se das funções monetárias dos bancos
comerciais, abastecendo seus passivos nos "mercados atacadistas de dinheiro"
("wholesale money markets"), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e
famílias. Não por acaso, a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano
cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. Esse
fenômeno corresponde ao controle da riqueza social pelas instituições privadas, o que
torna impossível a omissão dos bancos centrais quando um elo da cadeia se rompe.
O depoimento mais constrangedor, entre tantos de "Inside Job", é prestado pelo
economista Frederick Mishkin. Ex-membro do Federal Reserve, Mishkin não consegue
explicar porque às vésperas do colapso dos bancos da Islândia produziu um relatório
que assegurava a estabilidade do sistema financeiro do país, mediante o estipêndio de
US$ 124 mil.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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