18 de out. de 2010

Política da imanência

Do blog Navalha de Dalí


1 Com a saída de Marina Silva, o debate eleitoral brasileiro passou inequivocamente a girar no vazio. A estratégia programática de Dilma, acreditando na transferência de popularidade e de carisma do governo Luís Inácio, apostou em um signo vazio que denunciei em outro texto: a continuidade. A estratégia programática serrista, ainda mais vazia, temendo a referida transferência, chegou a arvorar-se na imagem de Lula e, mais recentemente, adotou a estratégia já há muito denunciada por Espinosa: o medo como o afeto político.

2 Toda a campanha de Serra agora produz outro regime de signos, oficiais e não-oficiais, mas aparentemente eficazes, porque capazes de remexer os desejos mais fascistas, radicados na moralidade média e na “honestidade” (por vezes perversa e hipócrita): “ela não vai dar conta”; “ela é búlgara, não pode assumir a presidência porque a Constituição exige seja brasileiro nato”; “Dilma é terrorista e não pode entrar nos Estados Unidos”; “Dilma assaltou bancos”; “Dilma é lésbica”; “Dilma não é cristã”; “Dilma é a favor de matar criancinhas”, como teria dito a Sra. Monica Serra, sobre cujo suposto aborto ainda pairam algumas questões mal-resolvidas etc., todos repetidos ad nauseam e viralizados, seja pelas redes sociais, pelos spammersou na base da boa e velha panfletagem impressa na gráfica de gente conhecida e “do bem”.

3 Dilma adotou uma tática triplamente articulada: uma baseada em uma reação enfática e necessária, embora não destinada a conquistar votos e, sim, a retirar os militantes da apatia; outra, em um ataque pessoal direto (mais do que justificado pelos ataques tucanos, porque guerra de (des)informação é guerra); a terceira, a via que falta a Serra e que eu tanto esperei ver em Dilma (mas ainda quero ver mais!): a positividade propositiva. Não basta continuar, é preciso estender e inovar. O “como” não compete a Serra, que cai em contradições ainda piores que as imputadas a Dilma pela grande mídia, como foi exemplar a referente à questão do aborto.

4 Não vejo qualquer contradição entre as duas afirmações de Dilma sobre o aborto; frases, aliás, que estamparam Veja nas últimas semanas. Ser a favor da descriminalização do aborto e, ao mesmo tempo, contra o ato de aborto, é tão coerente como ser a favor da descriminalização do adultério, mas ser contra o ato de adultério. Veja quis – como de costume faz –, confundir política criminal e moralidade média, cristã. A massa acrítica, no entanto, engole facilmente um Reinaldo Azevedo com dois ou três Engovs.

5 Os “cristãos” que afirmam de pés juntos “não matam”, assim comoa senhora Monica Serra, são os mesmos que acreditam que o Bolsa Família é uma política perniciosa, estéril e intrinsecamente injusta. “Oneram a classe média e pagam os pobres para continuarem fazendo filhos sem trabalhar”, é o que eles dizem. Mas, não; cristãos nunca matam no ventre – esperam que os fetos já estejam fora dele para, então, deixá-los morrer.

6 É, no entanto, preciso moderar o tom. As campanhas de Serra e Dilma adotaram o tom “em favor da vida”, mas essa aparente homogeneidade não deve enganar. O discurso serrista “em favor da vida” é moralista, infundado e sem objeto. Um ponto em que Dilma deve bater incansavelmente nas próximas oportunidades, é que ser “a favor da vida”, para Dilma e para o PT, não é ser capturado, pura e simplesmente, pelo discurso cristão: é ser a favor de uma forma de vida que vale a pena ser vivida. É isso que se quer dizer com a assunção do desafio da “erradicação da miséria”. Essa é a esperança que Dilma oferece como um cintilar de positividade capaz de ultrapassar o medo, o horror e o ódio que pautam a campanha desde a saída de Marina. 


7 O PSDB/DEM, com seus signos oficiais e não-oficiais, está em guerra franca contra as instituições democráticas e os grupos minoritários. Combatem a liberdade de expressão (sempre interpretada como censura), o direito de defesa (sempre interpretado sempre como agressividade gratuita), os homossexuais (“Dilma é lésbica”), os ateus e aqueles que confessam outras práticas religiosas (“Dilma não é cristã”), os estrangeiros (“Ela é búlgara...”), as mulheres (“Ela não vai dar conta”), a história (“Dilma é terrorista”)... Jesus não é a verdade ou a justiça. A verdade e a justiça são a libertação do medo que oprime e do obscurantismo que teima em retornar; mas “o mesmo”, dizia Deleuze, só o veremos uma vez. Isso não garante coisa alguma: apenas suscita a responsabilidade de escolher entre sermos livres, conduzindo-nos pela esperança, ou se cederemos, uma vez mais, ao afeto negativo, aos buracos-negros, do terror, do ódio e do medo.
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