27 de out. de 2010

Miopia jurídica

Do blog de Rosivaldo Toscano Jr.

Sobre inquéritos, denúncias e miopia...


A foto acima diz respeito a uma ação penal por dano ao patrimônio público que me chegou para receber ou não a denúncia hoje. Os dois círculos amarelos representam os locais em que  o portão de um Posto de Saúde foi chutado por um indivíduo. Quer saber o que tem isso a ver com a miopia? Leia o post...
Hoje pela manhã, a convite da Corregedoria de Justiça, fui a uma reunião sobre segurança pública. Estavam presentes, além do nosso Corregedor, a Corregedora do Ministério Público, oito juízes criminais, um Promotor de Justiça que atua na Central de Inquéritos, os Secretários Estaduais da Segurança Pública e do Interior e Justiça, as cúpulas das polícias Civil e Militar e o procurador Geral do Estado. Discutimos a questão sob vários ângulos. Em determinado momento pedi a palavra.Contei da minha indignação com a nossa falta de estratégia na seara penal. E esse estado de coisas não dizia respeito ao RN, mas sim fazia parte de um modelo míope de enfrentamento da criminalidade. 
Como não havia um planejamento, não existia investigação. Ou havia a prisão em flagrante ou dificilmente a investigação seria bem-sucedida. E como não havia organização e nem estrutura adequada, mesmo nos casos de flagrante somente os mais simples (ou os que chamassem a atenção da opinião pública) eram  efetivamente investigados. Contei que estava cansado de receber inquéritos e denúncias por furtos de dois quilos de carne, de oito barras de chocolate, de um par de sandálias Havaianas, de um litro de Old Eight, de vinte e uma calcinhas que custavam três reais cada ou de um pedaço de ferro. Estava cansado de investigações de crimes de dano por arranhão em um orelhão, chamuscamento de parede ou estouro de cano de uma cela. Enquanto isso, centenas de inquéritos em crimes graves, incluindo homicídios e crimes econômicos, mofavam nos armários das delegacias.  Um dos colegas fez uma crítica muito pertinente sobre a ineficiência do Ministério Público e da polícia na investigação dos crimes econômicos que causam prejuízos milionários ao Erário Público.
Embora seja adepto da criminologia crítica e saiba que o sistema penal só funciona mesmo de forma seletiva e discriminatória, perseguindo e punindo os mais pobres, distantes do poder, não deixei de me indignar quando, duas horas depois, ao despachar no meu gabinete, deparei-me com dois fatos. Em um inquérito investigando o homicídio de um recém nascido, parado na Promotoria de Investigações Criminais desde dezembro do ano passado, uma das promotoras que lá atuava pediu novo prazo para analisar o caso, pois estava assoberbada de trabalho e sem condições de dar uma cota, mesmo em se tratando de caso tão grave. Pensei na família do bebê, há quase um ano  aguardando... o nada. Era a segunda vez que os autos voltavam com a mesma manifestação do MP. Despachei-o informando que deveria ocorrer a devolução dos autos o quanto antes, com pedido de arquivamento ou de diligências, pois não tinha cabimento aquela paralisação.
No processo seguinte a ser despachado, eis que me vem uma denúncia de um acusado que teria chutado e amassado a grade de um portão de ferro de um Posto de Saúde. O irrisório dano está na foto em preto e branco acima. Obviamente, absolvi-o sumariamente.
Enquanto isso, casos graves envolvendo a criminalidade econômica, corrupção e crime organizado terminam, na prática, ficando em segundo plano diante das situações corriqueiras e de pequeno impacto social. Não seria isso uma miopia, uma falta de estratégia para o enfrentamento prioritário das grandes questões?

Eis um trecho da sentença de absolvição sumária antecipada:
"O mais gritante nessa situação toda é o fato de que na data de hoje me reuni com os Corregedores da Justiça e do Ministério Público, com juízes e promotores com atuação destacada na seara penal, com os Secretários Estaduais da Segurança Pública e do Interior e Justiça, com as cúpulas das polícias Civil e Militar e com o procurador Geral do Estado, para tratarmos do problema da segurança pública. Não é mais admissível que tenhamos somente na Zona Norte da cidade 300 homicídios sem solução e que não haja estrutura mínima de trabalho para os delegados responsáveis. Ademais, tenho vários inquéritos envolvendo homicídios parados há meses (hoje recebi mais uma cota ministerial solicitando mais tempo para analisar uma investigação sobre uma suspeita de homicídio de um recém-nascido - com o MP há 11 meses em razão de alegar excesso de trabalho). Enquanto isso, tenho nesse caso uma série de depoimentos, a atuação do MP e do ITEP (e com feitura de laudo!), para investigar o amasso da grade de um portão."


A íntegra da sentença se encontra aqui.

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