18 de out. de 2010

A história do Mundo V

Por David Coimbra
Do sucesso no comércio ao medo da morte

Sabe qual foi a primeira visão que tive de Tóquio? A primeira cena com que meus olhos redondos de perplexidade depararam quando desembarquei do trem-bala, sabe qual foi?
Japoneses.
As portas automáticas do Shinkansen se abriram, avancei dois passos estação ferroviária adentro e, diante de mim, surgiram milhares de japoneses. Milhares! Japoneses, japoneses, japoneses todos eles. Nenhum ocidental, nenhum negro, nenhuma loira. Só japoneses. Eram eles e eu. Eles japoneses, eu um não-japonês.
Foi uma sensação estranha. Foi como se estivesse em outro planeta. Lembro de ter pensado:
“Mas por que tanto japonês junto?”
Eis o busílis. Eis algo fundamental a se perguntar. Por que razão milhões de japoneses vivem tão próximos uns dos outros? Mas não só os japoneses. Nós todos, chineses que já se amontoam em bilhão e meio, indianos que são um  bilhão e tanto, europeus, americanos, africanos às catadupas por que nos reunimos preferencialmente em cidades? Por que vivermos tão próximos uns dos outros, às vezes em cubos de concreto contíguos, às vezes havendo um vizinho a sapatear dois metros acima, outro a ouvir pagode dois metros abaixo, mais uns quantos assistindo Faustão à esquerda e outros vendo Noroeste de Bauru versus São Caetano à direita, por quê???

Aí está!
Nem sempre foi assim. Nos albores da Civilização, as comunidades eram rurais. As pessoas viviam em núcleos agrícolas, cultivavam a terra, produziam seus próprios alimentos, criavam os animais que lhes serviriam de subsistência e, desta maneira, a vida se arrastava placidamente, como pingos de chuva no telhado.
Até que um dia alguém fez algo diferente. Provavelmente foi um rapaz, um filho de agricultor. Ele descobriu que havia sido agraciado por vocação especial. Digamos que soubesse fabricar enxadas como ninguém. Enxadas perfeitas, que abriam na terra feridas simétricas como se fossem desenhadas a régua. O rapaz passou a fabricar enxadas para toda a família. Logo, os vizinhos estavam pedindo-lhe enxadas. Sua fama espalhou-se pelas redondezas. Então, ele percebeu que poderia ganhar algo com isso. Poderia produzir enxadas em troca de alimentos. Não precisaria mais enfrentar a dura lida do campo, que é de fato dura, duríssima.
Resolveu estabelecer-se, levantou uma casa fora da área rural, só que mais ou menos próxima das propriedades circunvizinhas. Desta forma, seria facilmente alcançado por todos os clientes em potencial. Mas é claro que, para bem viver, esse rapaz precisava de um poço artesiano do qual tirasse água de beber, de algumas roupas para se proteger do frio, de apetrechos de cama e cozinha. Como confeccionar tudo isso sem roubar o tempo de fabricar as enxadas que lhe encomendavam? Ele teve uma ideia, era um homem de ideias: conhecia outro rapaz, filho de outro agricultor, que sabia cavar poços com destreza ímpar. Chamou-o e propôs-lhe trocar o trabalho de abertura do poço por enxadas para toda a sua família. O outro topou. E percebeu que poderia imitá-lo. Estabeleceu-se nas cercanias como especialista em escavação de poços. Cavoucava poços, e por eles ganhava mantimentos, roupas e, bem, enxadas.
Aos poucos, mais especialistas foram se acercando daquele local tão propício. Um levantava casas, um cosia roupas, havia quem montasse mesas e cadeiras. Necessitavam do trabalho um do outro, cada um vivia de acordo com suas habilidades e, desta maneira, todos se ajudavam. Logo, concluíram que seria indispensável rasgar caminhos entre a casa do ferreiro e a do pedreiro, entre as fazendas e a padaria, entre o sapateiro e a costureira. E se reuniram para tocar esse empreendimento em comum. E escolheram um deles que fizesse o trabalho por todos. Era o primeiro funcionário público da humanidade.
Um dia, uma jovem esposa enviuvou. Seus pais já estavam mortos, ela se viu sozinha no mundo, sem terra, sem trabalho e com fome. Mas possuía um corpo rijo e bem formado, cobiçado pelos homens da vizinhança, e compreendeu que poderia sobreviver concedendo favores sexuais por uma coisa à toa, uma noitada boa ou um corte de cetim. Foi a primeira mulher-dama, a primeira meretriz, a primeira cortesã, a primeira alcouceira, a primeira marafona, a primeira rameira, a primeira madama, a primeira mariposa, a primeira mulher pública do mundo, donde se vê que a prostituição é uma das mais antigas, mas não a mais antiga profissão da História.
Você consegue ver a nossa cidadezinha original já formada? Suas casinhas dispostas lado a lado em ruas precárias? As pessoas se movimentando para lá e para cá na busca da solução para suas necessidades diárias? O pão matinal, o conserto da goteira do telhado, a túnica de lã para vestir no inverno, o balde para puxar a água do poço, você consegue vê-las se deslocando como formiguinhas atarefadas atrás disso tudo? Comprando e vendendo? Ou, naqueles tempos primevos, trocando? Se você conseguiu imaginar compreendeu que a cidade é produto do comércio. Quando o homem começou a comerciar, fundou a cidade.
Neste lugarejo original havia riquezas e mulheres belas. Havia o que aflorasse a rapacidade de homens ambiciosos. Volta e meia, um grupo armado o invadia e tomava o que bem entendia, arrastava pelos cabelos as filhas formosas dos artesãos e as possuía, levava embora roupas, ferramentas e animais, comia e bebia o que fora estocado com tanto sacrifício e labor. Para se proteger desses bandoleiros, os cidadãos se reuniram mais uma vez e designaram um dentre eles para preparar suas defesas. Era o primeiro estrategista militar. O primeiro general. Que formaria o primeiro exército. E, de posse do mando, esse homem sentiria os eflúvios inebriantes do poder, sentiria o prazer incomparável de pisar no pescoço de outros homens e não quereria mais deixar de ser tão grande. Transformar-se-ia no primeiro ditador, o primeiro déspota, pai de todos os reis e presidentes.
Até do Sarney.
Mas assaltantes e tiranos não eram os únicos males a afligir a nascente Civilização. Porque, com a proximidade, além de serviços, amores e pavores, os homens passaram a compartilhar vírus, bactérias, fungos e protozoários. E então havia, e há, câncer, alzheimer, hipereclepsia, parkinson, enxaqueca, psoríase, glaucoma, amnésia, urticária, sinusite, gagueira, hipersudorese, anemia, síndrome de Williams-Beuren, apneia, labirintite, lúpus, osteopoiquilose, apendicite, vitiligo, gripe, asma, bócio, bruxismo, conjuntivite, criptorquidia, gastrite, sinusite, prurido, alergias, osteoporose, síndrome de down, trombose e dor de dente.
O homem sofria de males variados. E deles, não raro, morria.
Agora nós chegamos ao evento mais importante da vida: a morte.
O homem via os seus entes queridos, e até alguns não tão queridos, desaparecerem para sempre. Assustava-se: ele também desapareceria para sempre? Todos os seus sentimentos, sonhos e realizações se esfumariam? Não era possível. Não havia lógica. Para que começar, se um dia tudo vai terminar?
É esse o grande drama da existência. Uma gargalhante ironia: a angústia da morte rege a vida. O homem atravessa seus dias neste Vale de Lágrimas tentando se imortalizar. Em resumo: passa a vida pensando no que lhe vai ocorrer depois da morte.
Como vencer a morte? A maioria tem filhos, espalha sua descendência pelo planeta. Mas não basta. Em duas ou três gerações o dono dos genes é esquecido. Alguns tentam realizar obras, escrever livros, compor músicas, pintar quadros. Também é pouco. As realizações realmente importantes são para raros, usualmente tudo o que um homem produz em vida é consumido durante a sua vida.
Como, então, ser imortal? Como fazer com que a vida tenha sentido?
São perguntas que a religião tenta responder. Nem sempre com sucesso, uma vez que as promessas das religiões, de todas as religiões, só se cumprem depois da morte.
Mas o que importa aqui é o papel da morte na vida.

Somos assombrados pela morte desde sempre. 
A ideia aflitiva da morte moldou as civilizações. E um povo, mais do que todos, conseguiu se imortalizar graças à morte: os egípcios. É sobre eles o próximo capítulo de “A História do Mundo”.

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