18 de out. de 2010

A constitucionalização dos direitos sociais

Do blog do Nassif

Por Anderson Rosa Vaz
Da Constituição Dirigente à Constituição Dirigida: uma mudança de paradigma desencantadora
Anderson Rosa Vaz[1]
Em sua versão original, defendida na obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, publicada em 1982, o autor português José Joaquim Gomes Canotilho – uma das maiores fontes de inspiração para o constitucionalismo brasileiro – defendeu a tese de que os direitos de segunda dimensão teriam condições de obrigar o legislador a complementar o texto constitucional, fixando políticas públicas geradoras de prestações estatais positivas.
Tratava-se de defender a constitucionalização dos direitos sociais como verdadeiras imposições desencadeadoras de ações estatais e, portanto, direitos fundamentais sociais. Nessa perspectiva, eventual inércia estatal em relação à implementação desses direitos seria encarada como inconstitucionalidade por omissão.
A sustentação dessa tese transfere para a Constituição a decisão entre capitalismo e socialismo como sistemas econômicos possíveis, bem como a definição das extensões das tarefas do Estado. Para Canotilho essa seria uma questão ideológica: quem defende a perspectiva democrático-social do Estado aceita que na Constituição venham traçados os princípios fundamentais sócio-conformadores. A Constituição deixa de ser carta de boas intenções para se transformar um uma Lei transformadora de sociedades mais justas. Outrossim, a Constituição dirigente pressupõem, nessa perspectiva, uma autosuficiência normativa, de forma que suas imposições normativas prima facie – bem como as ordens para legislar e administrar – adquirem, imediatamente, força normativa.

Canotilho, contudo, mudou radicalmente seu posicionamento e passou a defender a falência do modelo constitucional dirigente. Em escritos da década de noventa passou a defender a "insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social" e a "desconstitucionalização" das políticas sociais. Renega, desde então, até mesmo a expressão Constituição dirigente. Esse incômodo assunto, historicamente explicável, não tem merecido a devida atenção da literatura jurídica pátria.
Canotilho atribui essa guinada de pensamento ao "desconstrutivismo pós-moderno", indicando que a própria sociedade civil, e não mais o Estado, será a responsável por resgatar o senso de justiça ínsito aos direitos sociais. Apoiado na teoria da diferenciação funcional dos sistemas de Niklas Luhmann, pela qual a sociedade não possui um centro político decisório, não seria possível existir uma supra-ordenação do Estado sobre as forças da sociedade, nem qualquer direção política imperativamente conformadora de fins.
Para perplexidade geral de seus seguidores e admiradores, passou a negar a possibilidade de os direitos sociais, culturais e econômicos, fixados apenas no plano constitucional, gerarem, sem a interferência do legislador ordinário, direitos subjetivos. Defendeu, já no início do século XX, a conservadora tese de que a aplicabilidade direta não significa que as normas garantidoras de direitos fundamentais – até mesmo os direitos, liberdades e garantias –, configurem direitos subjetivos. Trata-se de entender parte das normas constitucionais como normas sem força vinculante – ou força meramente programática.
Assume a posição de que a crise do Estado e a crise do direito moderno implicam em sérias dificuldades no plano normativo-concretizador, chegando a afirmar, de forma surpreendente, que os direitos econômicos, sociais e culturais "não são verdadeiros direitos mas, apenas, política ou economia." Aquilo que Carl Schmitt, analisando a Constituição de Weimar (1919), havia chamado de "compromissos dilatórios" (dilatoriscen Formelkompromiss). No Prefácio à segunda edição do livro Constituição dirigente e vinculação do legislador, prefácio este publicado em 2001, o autor anuncia a morte da Constituição dirigente
Para esse "novo" Canotilho os tempos são outros e o triunfo é da sociedade liberal. Não do Estado Social. Não seria da competência da Constituição acrescentar constitutivamente novas tarefas a um Estado pré-constituído segundo a natureza das coisas. Nesta linha, o mercado de serviços tende a fazer as vezes do poder público, em áreas como saúde, educação, alimentação, seguridade social, segurança, cultura, moradia, lazer etc. E isso, para Canotilho, não é ruim, algo que tenha necessariamente de ser atribuído aos "malefícios econômicos do neoliberalismo." Em substituição ao Estado Social, e portanto também à Constituição dirigente, o terceiro capitalismo, e sua abertura sócio-econômica, conduz o autor a uma surpreendente conclusão: a empresa privada será o único sujeito capaz de responder a uma modelo de ação social universal.
Abandonada a tese da Constituição dirigente, o autor propõe adoutrina da Constituição diretiva. Significa que, mesmo sem capacidade auto-referencial, o direito continua sendo instrumento fiável da sociedade. Contudo, o direito e com ele a Constituição, caminhará ao lado de outros instrumentos sociais, notadamente os ligados à economia e as boas práticas da governança privada. Significa que seu código normativo não poderia se impor aos outros sistemas diferenciados – religião, moral, etiqueta, mídia, economia etc. Em função dessa diferenciação funcional da sociedade, a Constituição perde sua condição de centralidade sistêmica e acaba se transformando em sistemadirigido, por ser de capacidade autopoiética derivada.
Difícil compreender – e aceitar – como a modificação de postura e entendimento desse autor possa amoldar-se à analítica Constituição do Brasil de 1988. De modernidade tardia e carente de socialização de direitos, a Constituição brasileira, com sua postura ideológica dirigente, é querida e necessária neste País. Outrossim, esses mais recentes textos do mestre português, que falam em triunfo do mercado e decadência do Estado Social, antecedem à recente crise do liberalismo econômico no mundo – crise que coloca em dúvida o tal "triunfo do liberalismo". Em tempos de alardeadas reformas tributária e política, a compreensão da tensão entre a Constituição dirigente e a Constituição dirigida pode explicar muito. De toda a forma, a análise sistemática dessa mudança paradigmática de Gomes Canotilho ainda está por ser feita pela doutrina nacional.
[1] Anderson Rosa Vaz é Mestre pela UNIFRAN/SP e Doutor pela PUC/SP. Professor na Faculdade de Direito da UFU. Procurador do Município de Uberlândia. Membro da Comissão de Direito Humanos da OAB-Uberlândia. rosavaz2000@yahoo.com.br. 

Um comentário:

  1. Bom dia professor Anderson,

    Excelente artigo!

    Pedro Gabriel 5º direito UEMS (Paranaíba-MS)

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