1 de nov. de 2010

Freio às corporações


Rizzatto Nunes no Terra Magazine
De São Paulo
Uma característica cada vez mais clara e marcante do capitalismo contemporâneo é a da influência exercida pelas grandes corporações nas ações do Estado, não só mediante lobbies que exercem pressão nos congressistas das diversas nações do planeta, mas também atuando diretamente na exploração de produtos e serviços públicos essenciais que acabam sendo privatizados; no exercício de atividades tradicionalmente privadas na vitória de licitações das obras públicas; no suprimento de lacunas de certas atividades em que o Estado vai abrindo mão de cumprir sua função básica, como oferecimento de serviços de saúde e hospitalar, de transportes básicos, de segurança pública etc.
Enfim, se olharmos atentamente veremos os enormes tentáculos das grandes corporações (nacionais ou transnacionais) exercendo forte influência nas decisões políticas de ordem econômica e nas ações do Estado na gestão da sociedade civil. É verdade que, também modernamente, se implantou nesse modelo de capitalismo as agências reguladoras. Todavia, se, do mesmo modo, prestarmos atenção nelas, veremos que elas não têm cumprido seu papel de defender os interesses e direitos dos consumidores e da sociedade em geral.

No passado, quando era o próprio Estado que fornecia serviços essenciais como, por exemplo, o da energia elétrica ou de telefonia se, por acaso, houvesse qualquer problema que afetasse os direitos dos usuários consumidores, era mais fácil para as pessoas lesadas, por um exercício de pressão política, obter ressarcimento de perdas e/ou restabelecimentos de direitos ou do próprio serviço. Na atualidade, como muitos dos produtos e serviços essenciais oferecidos e prestados estão nas mãos de fornecedores privados e como o Estado não tem sido competente no controle desses fornecedores, os consumidores têm tido muita dificuldade para fazer valer suas vozes e seus direitos.
Infelizmente, é fácil perceber que os abusos contra os consumidores estão por todos os lados. Veja-se a questão da qualidade dos produtos. Já tive oportunidade de comentar que as associações de defesa do consumidor, de forma independente, têm feito seguidamente testes para aferir a qualidade dos produtos oferecidos no mercado, e o resultado é alarmante. São molhos de tomate contendo pelos de roedores, fragmentos de insetos e larvas; queijos com fungos, bactérias e coliformes fecais. Ou, então, são produtos que anunciam nutrientes e oferecem qualidades inexistentes, como, por exemplo, vários cereais matinais, consumidos pelas crianças e que contém excesso de sódio e falta de fibra. O espantoso é que nesses casos várias das empresas envolvidas são grandes indústrias de renome nacional e internacional.
O descontrole do mercado é incrível. Aliás, é bom lembrar que foi exatamente a falta de controle que levou à crise financeira internacional desencadeada há dois anos atrás no mundo todo.
Dever do Estado
Por determinação constitucional e legal no Brasil, o Estado é o responsável pela fiscalização de tudo o quanto ocorre no mercado de consumo. E, não só por determinação constitucional e legal, mas também por questão de ordem política e social. Quando me refiro ao Estado quero dizer todos os entes da Federação nas suas esferas de competência: A União, os Estados-membros e os Municípios.
Uma parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado tem uma certa autonomia em relação à fiscalização estatal, tais como a indústria e comércio de vestuário, a produção e distribuição de livros, jornais e revistas, a oferta de cursos livres etc. No entanto, um amplo setor da economia está não só atrelado às determinações do Estado diretamente ou por intermédio de suas agências e autarquias, como são explorações autorizadas para se estabelecer ou funcionar mediante concessão. Anoto inclusive que, não é porque o Estado privatizou certos setores que não tem mais responsabilidade sobre eles. Bem ao contrário: os setores privatizados devem ser vigiados de perto!
Ganância
Se houve alguma coisa boa na última crise financeira internacional, ela talvez seja a demonstração de que não se pode mais acreditar que o mercado de consumo seja capaz de resolver suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" de mercado que fosse suficiente para corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios, piorar a qualidade de seus produtos e serviços ou até, às vezes, embolsar diferenças extraordinárias advindas de cálculos equivocados feitos na relação estabelecida com o Estado e suas agências na aplicação de reajustes, na obtenção de benefícios especiais, incentivos fiscais etc.
Para lucrar mais, o empresário acaba correndo o risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. Ademais, com o fenômeno da chamada globalização, o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc, as grandes corporações acabaram por mudar seus pólos de produção para locais que ainda não tinham tradição de produção de excelência. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade.
As conhecidas marcas mundiais passaram a atuar cada vez mais no marketing de manutenção da grife e, em alguns casos, tais marcas foram produzidas já no ambiente globalizado iludindo os consumidores que acabam adquirindo a marca em detrimento do próprio produto. Ou, dizendo em outros termos: o fato do produto ou serviço ser oferecido por marca conhecida mundialmente não garante mais sua qualidade.
Pode até ser que outrora o produto feito na matriz em que foi criado fosse bom, mas não se pode mais garantir que continue sendo, na medida em que são produzidos em locais que não tem mão de obra adequada e ambiente de trabalho solidificado na experiência.
Fiscalização
Desse modo, como a regra mercadológica é faturar ainda que piore a qualidade e segurança dos produtos e serviços, exigi-se maior participação do Estado diretamente na economia. É um grave erro sua saída do mercado, pois, muitas vezes, é apenas o Estado que pode resolver os problemas surgidos.
Veja-se o caso do setor dos serviços oferecidos por grandes empresas no Brasil. Há quase dois anos, a Presidência da República teve que regulamentar os SACs- Serviço de Atendimento ao Consumidor via atendimento telefônico (O decreto entrou em vigor em 1º de dezembro de 2008). O ato presidencial foi necessário porque esse tipo de serviço era muito ruim. Sem a intervenção do Estado, alguém acredita que ele iria melhorar?
Evidentemente, há necessidade de intervenção e fiscalização em vários outros setores: no da produção e importação de brinquedos, no de alimentos, no de medicamentos etc.
O mercado livre
Enfim, a cada dia que passa, fica mais claro que a chamada era do mercado de consumo livre, exige sim uma ação direta do Estado, em todas as suas áreas de competência e atuação, para garantir o mínimo de qualidade e segurança dos produtos e serviços oferecidos. Lembro que no Brasil há leis claras sobre o assunto, dentre as quais destaco a Constituição Federal (arts. 170 e seguintes) e o Código de Defesa do Consumidor e, a partir delas, deve o Estado brasileiro atuar diretamente ou exercendo fiscalização eficaz. É o que todo consumidor espera.

Rizzatto Nunes é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP. É desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Autor de diversos livros, lançou recentemente "Superdicas para comprar bem e defender seus direitos de consumidor" (Editora Saraiva) e o romance "O abismo" (Editora da Praça).

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