Os povos indígenas estão clamando ao governo por políticas sociais específicas de erradicação da pobreza, respeito e preservação das identidades. Pedem programas de geração de renda que sejam ambiental mas também culturalmente sustentáveis. Reivindicam capacitação profissional diferenciada para os jovens. Querem, por princípio e direito, mais voz e participação na elaboração e execução de políticas públicas.
O governo recebeu na tarde de ontem (sábado, 27) estas e uma série de outras reflexões e propostas para aprimorar os procedimentos de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) às populações indígenas.
As formulações nasceram de um processo inédito que envolveu ao longo do ano cerca de 250 lideranças tribais, jovens, professores e pesquisadores para perceber as demandas sobre violências e violações de direitos das crianças e adolescentes indígenas do Brasil.
Coordenado pelo Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), o estudo acabou por apontar circunstâncias da vida tribal não apenas nas quais o Estado não faz cumprir o Estatuto mas, sobretudo, naquelas em que o ECA simplesmente não encaixa, ou não encaixa perfeitamente bem.
Os relatórios das oficinas apontam alguns casos de conflito entre a lei e a vida como ela é, e dão pistas da complexidade da questão.
Se, por exemplo, para a cultura dominante (formuladora do ECA), crianças são os indívíduos com entre 0 e 12 anos, para os Guarani Mbya as pessoas serão crianças até os 7 anos. Esta visão das faixas etárias tem forte significado na implementação de direitos e deveres e na legitimidade dos costumes.
É comum encontrarmos diferentes nações indígenas com distintos conceitos de infância e sobre o que chamamos “autonomia progressiva” de crianças e adolescentes. Entre os Xerente, por exemplo, a pessoa ainda é considerada criança enquanto tiver medo de ir sozinha caçar e pescar.
O estudo colheu, para dar outro exemplo, narrativas de intervenção de conselhos tutelares em determinadas comunidades condenando como trabalho infantil um mutirão de limpeza ou outras atividades que incluem tradicionalmente as crianças.
As práticas de doação e adoção de crianças, os eventuais mas impactantes casos de morte de crianças com deficiências, os casamentos pré-destinados e a idade para o casamento são também temas que tem distintas abordagens entre as nações indígenas e também entre suas tradições e o que prevê o ECA.
O mesmo se dá com a Lei Maria da Penha (no caso dos direitos da mulher) e até com o Código Penal.
Os relatos apontam ainda para questões como o uso de medicamentos tradicionais e o trabalho das parteiras e dos pajés numa equação para uma melhor asssitência pré-natal; o combate à alta taxa de mortalidade; o eterno desafio da educação indígena bilingue de qualidade; e, agora, da influência da internet.
Somam-se ainda três grandes preocupações bem conhecidas:
- perspectivas e projetos de vida das crianças e dos jovens indígenas no interior de suas comunidades e fora delas;
- os grandes empreendimentos próximos às áreas indígenas (estradas, barragens etc.), multiplicando casos de abuso sexual, pedofilia, prostituição de crianças e adolescentes e doenças sexualmente transmissíveis; e,
- a proximidades das crianças e jovens com os modos de vida e problemas típicos das cidades.
De maneira geral, e como sempre se soube, a situação dos índios urbanizados é complexa, representa quase sempre perda de identidade, humilhação, discriminação, miséria... e certamente é causa de muitos dos suicídios entre jovens.
É na relação com o meio urbano que ocorrem os casos de mães que expõem os filhos para pedir esmola e batem nos filhos por não cuidarem da casa; de mães que deixam os filhos na creche, sem que isso faça parte das culturas indígenas. E também os casos de mulheres indígenas que vão para a cidade, engravidam e não recebem pensão alimentícia.
As propostas
Trata-se, como se pode ver, de um olhar bastante crítico e desafiador sobre como os indígenas vivem a questão dos “direitos da infância” em culturas tão distintas e ao mesmo tempo tão intricadas com a dominante.
Os resultados da pesquisa não surprenderam o governo federal, ele mesmo parceiro da iniciativa através da Secretaria de Direitos Humanos (SDH-PR) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) com o propósito de colher subsídios para a formulação de políticas públicas específicas e para o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (2011-2020).
No coração das recomendações, permeando todas elas, está a necessidade de urgente refinamento do diálogo entre os conselhos tutelares e os conselhos de lideranças tribais.
Deve-se entender que quando o tema é a prática da violência (física e de várias outras naturezas) contra crianças ou protagonizada por jovens, em muitas tribos há um conselho da comunidade que orienta como devem ser as punições, que define as políticas internas.
A qualidade do diálogo entre os conselhos tribais e os conselhos tutelares – e maior participação indígena nestes - é estratégica para que a aplicação da lei universal seja feita considerando as especificidades indígenas. Claro, o índio tem que apitar!
Outras das principais propostas/metas:
- incorporar o ensino dos direitos indígenas e de crianças e adolescentes nas escolas indígenas, após consulta e consentimento das comunidades;
- registro de nascimento a 100% de filhos de pais ou mãe indígena;
- 100% das terras indígenas com escola de educação básica (ensinos fundamental e médio);
- telecentros, pontos de cultura e cineclubes em todas as aldeias;
- 100% de assistência judicial a adolescentes em conflito com a lei; e,
- maior mapeamento de dados e indicadores sobre causas de mortes de crianças e adolescentes.
- registro de nascimento a 100% de filhos de pais ou mãe indígena;
- 100% das terras indígenas com escola de educação básica (ensinos fundamental e médio);
- telecentros, pontos de cultura e cineclubes em todas as aldeias;
- 100% de assistência judicial a adolescentes em conflito com a lei; e,
- maior mapeamento de dados e indicadores sobre causas de mortes de crianças e adolescentes.
A pesquisa
Mesmo à época da mobilização pela elaboração e aprovação do ECA (final dos 80) não se ouviu com tanta profundidade, direta e/ou indiretamente, a voz dos meninos e meninas da selva. A dinâmica se deu em um seminário nacional (maio 2010), quatro oficinas regionais ao longo do ano (com coleta de narrativas) e o seminário desta semana em Brasília.
Os principais temas levantados para a condução das oficinas (pesquisa qualitativa) foram: 1) A importância das crianças e adolescentes indígenas para o presente e o futuro de cada povo; 2) Identificação e descrição dos problemas das crianças e adolescentes indígenas; 3) Respostas indígenas aos problemas enfrentados por suas crianças e adolescentes; 4) O que tem sido feito pelas crianças e adolescentes indígenas no âmbito municipal, estadual e federal; e 5) Crianças e adolescentes indígenas em situações de risco - possibilidades de ação e políticas conjuntas.
2) A cada um desses temas correspondeu um conjunto de questões que abordaram os modos como as crianças e adolescentes indígenas se tornam membros reconhecidos de suas comunidades, seus projetos de vida, as violências ou agressões praticadas contra eles.
*Ver mais em www.cinep.org.br
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