O inglês Philip Pullman é alvo de fundamentalistas cristãos por criar gêmeo de Jesus e subverter os Evangelhos
Nos evangelhos, Jesus Cristo é um só, mas no novo livro do inglês Philip Pullman, mais conhecido como escritor infantil e autor do best seller A Bússola de Ouro, Jesus e Cristo são gêmeos de caráter e metas diferentes. Em O Bom Jesus e o Infame Cristo (Companhia das Letras), Jesus é um orador carismático e acredita firmemente que o reino de Deus está próximo. Cristo, por outro lado, é um homem sem escrúpulos, que usa o talento do irmão para programar o futuro, isto é, organizar uma Igreja dentro dos padrões burocráticos, por concluir que os homens, sendo como são, só entendem a linguagem mundana – a do dinheiro, especialmente.
Acusado por teólogos de sacrificar a verdade histórica pela ficção, Pullman recebeu cartas indignadas de fundamentalistas cristãos, que o condenaram ao inferno. Debochado como convém à tradição dos ateus ingleses, ele se comportou como o Fausto de Marlowe diante de Mefistófeles, dizendo que não tem medo do inferno, pois já viu coisa pior.
O desprezo de Pullman pela religião institucional está registrado em muitos dos seus livros, principalmente na trilogia da qual faz parte A Bússola de Ouro. O escritor sugere que o cristianismo foi fundado numa fraude, o que justificaria as liberdades tomadas por ele ao tratar da vida de Cristo, como, por exemplo, explicar a ressurreição num registro naturalista ou questionar sua identidade divina. Sobre esse e outros temas, Pullman fala na entrevista a seguir.
Alguns críticos religiosos insistem que seus livros para crianças são anticlericais. Você pensava na Igreja quando escreveu a trilogia da qual faz parte A Bússola de Ouro?
Sim, mas não especificamente numa Igreja. Minha crítica era direcionada a todas as Igrejas que usam seu poder político, quero dizer, o poder de dizer às pessoas como elas devem viver suas vidas, o poder de puni-las se elas agem errado, segundo as regras da Igreja, o poder de semear guerras, de mandar gente para prisão ou simplesmente executá-las. Há muitos religiosos que exercitam esse tipo de poder nos dias de hoje.
Você foi condenado ao inferno por cristãos fundamentalistas contrários ao seu livro O Bom Jesus e o Infame Cristo. Você recebeu mesmo cartas ameaçadoras? Por que será que as pessoas ficam tão chocadas quanto um escritor ou um cineasta abordam a condição humana de Jesus, como Kazantzakis e Pasolini fizeram no passado?
Recebi, sim, algumas cartas, mas elas não eram exatamente ameaçadoras – seus autores não foram além do que me condenar ao inferno. Eles podem realmente me mandar para lá, mas, em primeiro lugar, devem me fazer acreditar no inferno. Acho que muitas pessoas se chocam quando são lembradas de que Jesus era um homem. Não posso sentir pena de pessoas que se deixam manipular de uma forma tão estúpida.
Um de seus opositores, o religioso Gerald O”Collins, escreveu um artigo dizendo que você omitiu passagens dos evangelhos ou simplesmente modificou episódios contados pelos evangelistas para criar sua própria parábola sobre Cristo. Você tentou ser fiel aos Evangelhos ou simplesmente ignorou a história para contar a versão que acredita ser a verdadeira?
Pobre padre O”Collins. Deve estar terrivelmente confuso. Ele acha que escrevi uma novela histórica e, mais que isso, que tem o direito de ditar leis sobre como uma novela histórica deve ser escrita. Esta é a minha história e eu a conto do jeito que quiser. Não tenho de me reportar ao padre O”Collins nem pedir sua permissão para escrever. Imagino que ele pensa que ainda exista o Index Librorum Prohibitorum e esteja no comando da coisa. De qualquer modo, se alguém tentasse seguir rigorosamente o que os evangelhos dizem, se meteria numa bela encrenca, pois um evangelho contradiz o outro o tempo todo.
Sobre O Bom Jesus e o Infame Cristo há uma crítica comparando seu livro a uma ficção histórica publicada há alguns anos, Quarentena, de Jim Crace, cujo tema são as tentações de Cristo no deserto. Por que Jesus é um personagem que fascina tanto escritores ateus?
Gosto da obra de Jim Crace, mas não li Quarentena. Jesus é um personagem original, notável, poderoso e não admira que tantos escritores tenham ficado fascinados por ele. Uma das coisas que tornam interessante escrever sobre Jesus é justamente a profusão de lacunas nessa história. Não temos ideia se era alto ou baixo, do que ele gostava de comer no café da manhã, ou se sua voz era suave ou grave.
A Inglaterra virou um território de ateus, os mais combativos em toda a Europa. Por que é tão importante lutar conta a Igreja cristã num mundo cheio de outros fundamentalistas religiosos?
Eu escrevo sobre o cristianismo porque fui criado nele. Sou ateu, mas sou um ateu cristão e um ateu protestante, um ateu da Igreja da Inglaterra. Nasci cristão e cresci dentro dessa fé. Adoro as histórias, os hinos e a arte que vieram do cristianismo. Não poderia, portanto, escrever sobre outras religiões, pois não me sentiria em casa se o fizesse. Eu detesto com todas as minhas forças qualquer religião que se considere acima das críticas.
Você acusou o papa Bento 16 de promover o desrespeito aos direitos humanos. Por que acha que a Igreja Católica tenha seguido um caminho reacionário nos últimos anos?
As autoridades da Igreja Católica sempre estiveram do lado do poder secular. Roma sempre gostou de quem tivesse armas e dinheiro. Quando há alguns anos algum padre da América Central começava a protestar contra a pobreza e a injustiça, as autoridades romanas lhe viravam as costas. Padres e freiras que seguiram esse caminho foram abandonados pela Igreja quando começaram a incomodar grandes corporações e ditadores. Naturalmente, Roma é reacionária. Se fosse seguir Jesus, a Igreja já teria entrado em colapso.
O filme A Bússola de Ouro foi um sucesso entre as crianças brasileiras. Você poderia adiantar como está a sequência, The Book of Dust (O Livro do Pó)?
O Livro do Pó está crescendo lentamente. Tenho andado ocupado com outras coisas nos últimos tempos para me concentrar no livro. Gostaria que A Bússola de Ouro tivesse uma segunda e até uma terceira parte, mas, infelizmente, não sei se teremos uma sequência. Talvez algum dia tenhamos uma edição do diretor do filme original e assim possamos ver cenas cortadas da versão exibida nos cinemas. Quem sabe um dia…
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