Do correspondente em Paris do blog do David Coimbra
A grande mostra com obras de Claude Monet (1840 – 1926) no Grand Palais está sendo celebrada como a exposição do ano em Paris, com expectativa de recorde histórico de público. De fato, há gente do mundo todo se programando para vir ver as cerca de 170 obras – a maior exposição individual de Monet em 30 anos –, e as filas são longas a qualquer hora ou dia que se tente entrar no Grand Palais. Depois de 60 minutos e muitas cigarrilhas de espera sob chuva torrencial, comecei a achar que aquela indiada para ver algumas das obras mais manjadas da história da arte não valia muito a pena. Lihn, minha namorada cambojana que nunca ouviu falar dos Beatles, parecia não se importar muito e devorava um mangá de 200 páginas sobre uma seita de executivos japoneses especializada em roubo de calcinhas mágicas.
– Talvez estas porcarias de desenho que você lê façam mais sentido no mundo atual do que as pontes e jardins que esse velho barbudo pintava – praguejei, tentando desfazer a poça d’água que se formava sobre o nosso guarda-chuva.
– Os mangás dele já eram coloridos? – me perguntou, com o ar de desdém tradicional, sem desviar os olhos minúsculos por trás dos óculos fundo de garrafa.
– Bastante. Mas sem nenhuma putaria.
– Não há putaria nenhuma aqui, senhor puritano.
Lihn nunca ouviu falar dos Beatles nem de Monet, mas não admite que se fale mal dos mangás.
Admiro, no impressionismo, mais a técnica em si do que a temática. Em resumo, as paisagens bucólicas não me dizem muita coisa, não me tocam, o que, imagino, deve acontecer com muita gente da minha geração.
Pois aí está o grande mérito dessa exposição exaustiva que está no Grand Palais: ao apresentar uma amostra muito grande da produção de Monet, consegue demonstrar aos ignorantes como eu que o artista pintou muito mais do que apenas paisagens, campos e praias. E se conclui então que, como uma boa banda pop, Monet ficou famoso pelos hits, e não pelos b-sides. E claro que os hits – neste caso as Nynpheas e pontes de seu jardim em Giverny, por exemplo — são bem menos interessantes. Os curadores conseguiram trazer obras do mundo inteiro, muita coisa de museus dos EUA (incluindo Metropolitan), Inglaterra e Alemanha, além de obras espalhadas com colecionadores particulares.
É possível constatar que as paisagens urbanas, por exemplo, são tão ou mais interessantes que as do campo. Nesta área se destacam os trabalhos sobre a Gare Saint Lazare, uma das mais antigas centrais de trem de Paris e, na época, símbolo de modernidade. O reconhecimento para esta série veio em uma frase certeira do grande Émile Zola, em artigo publicado no jornal Semaphore de Marseille daquele ano de 1877: “Nossos artistas deveriam encontrar a poesia das gares como seus pais encontraram a das florestas e das flores”.
Mas a história mais interessante da exposição é contada de forma velada, apenas para os olhos e corações mais atentos. É a do amor de Claude Monet e Camille, sua primeira mulher. Como a disposição das obras é feita de forma temática, e não exatamente cronológica, as telas que contam o romance, da felicidade à tragédia, estão espalhadas, sem relação entre uma ou outra. Resta ao visitante fazer os links. Logo no início, a famosa Lês Coquelicots a Argenteuil, de 1873, mostra Camille e Jean, o pequeno filho do casal, caminhando pelos campos da banlieur parisiense. Um pouco mais à frente, na parte de retratos, se pode voltar no tempo e ver a pintura gigante Camille ou La Femme de la Robe Verte, retratando a modelo que viria depois a se tornar a mulher do então jovem apaixonado Monet, em 1866.
Camille era uma espécie de “maria-pintor” da época, tendo posado também para Renoir, Degas e Manet. Mas foi imortalizada na obra do marido. São inúmeras as telas em que ele a retrata e, por fim, há a tela Camille Monet sur Son Lit de Mort, como o nome diz, mostrando-a morta, em uma manhã de 1879. Camille morreu de câncer aos 32 anos. Em meio à angústia do momento, Monet não teve outra reação a não ser retratá-la uma última vez, num gesto que, para muitos, revelaria insensibilidade. Alguns anos mais tarde, refletindo sobre o ato, ele diz que esta foi a única coisa que passou por sua cabeça desesperada: pintar.
Os quadros mais belos dessa relação feliz e de final trágico, no entanto, estão escondidos no meio da exposição e não mostram Camille nem a mencionam. Das histórias de algumas telas, fica-se sabendo que, em determinado período, o casal passou por dificuldades financeiras. Por trás de uma ou outra obra mais comercial, às vezes recusada pelos salões de arte, estava a tentativa de Monet de sustentar a família e suas inúmeras viagens, as reais fontes de sua inspiração. Com fidelidade profunda, Camille o acompanhou em diversas mudanças de cidade. Sabia que em algum rochedo de algum litoral ou colina de algum campo novo estaria a próxima inspiração do marido.
Foi certamente desse tempo de fidelidade (da parte dela, não tanto da dele) e aventura fugaz que Monet ressentiu-se ao pintar a tela mais reveladora dessa relação, chamada Soleil Couchant Sur la Seine, Effet d’Hiver, de 1880. Um ano após a morte de Camille, sozinho com dois filhos pequenos, ele pinta o sol mais triste e melancólico já visto. O sol parece estar nascendo por trás do rio Sena, em um típico dia de inverno na bucólica comunidade de Vétheuil. Parece o olhar de quem amanhece depois de mais uma noite mal-dormida. É possível sentir frio ao olhar a tela. O frio que Monet sentia à época por dentro e por fora.
Alguns anos mais tarde, ele viria a se casar de novo, para então viver os famosos e felizes anos na famosa casa dos jardins de Giverny. Mas essa já é outra das muitas histórias deste incrível mangá do século 19, pelo qual Lihn se esforçou para fingir interesse, e que está à disposição do público até o dia 24 de janeiro, no Grand Palais, em Paris.”
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