17 de jan. de 2011

É caso de ir atrás


Léo Rosa de Andrade na coluna Imperfeições no Notisul
Chamavam-no de Lira, o que não derivava da denominação que sua mãe escolhera, Armindo, nem da profissão de pintor, que aprendeu pintando. Também ele não sabia explicar por que lhe haviam dado esse apelido, mas adotou-o bem. Aliás, gostava dele, e o nome oficial, só o confessava com um sorriso irônico nos lábios, e se lhe perguntassem. Era cabo-eleitoral de um amigo meu. Tinha prestígio com uma turma de usos e costumes pouco estimáveis. Morava no Varzão, bairro não identificado nos mapas da prefeitura, depreciativamente chamado de Varzão Cagado. Também acho chulo, mas era dessa maneira que se referiam a ele os detratores do lugar.

Questão de dignidade
Acompanhado do seu político, foi me consultar. Fora abordado pela viatura e reagiu: cidadão pacato e do seu tipo não tinha que sofrer revista. Levou um tapa. Queria saber se podia processar o policial. Tendo prova do ocorrido, podia. Tinha, mas não queria processo. Ia sobrar para o mais fraco. Só desejava saber seus direitos, ter certeza de que estava em suas mãos levar ou não o agressor às barras de um tribunal. Questão de dignidade, não de vingança. Agradecido, convidou-me para um churrasco. De carne, rim e coração. De bebida, cachaça, que bebeu pouca, em respeito à visita. Livrei o Lira muitas vezes da cadeia. A última, por questão de briga com a mulher. Ela fumara umas pedras, ele, já tendo bebido, nem sabia o tanto que cheirou, foi o que o dinheiro deu.

Esperto, bêbado e drogado
Viviam juntos, mas era condenado a pagar pensão. Atraso, discussão, escândalo. Vias de fato. As agressões eram levíssimas e vinham de parte a parte, mas foi difícil a negociação.
Era uma delegada, tomou as dores, e não soltava o “elemento” sem o pagamento da pensão. Sem isso, seria lavrado o flagrante, e o juiz que decidisse. Fiquei responsável pelas parcelas seguintes, e a primeira eu paguei. O Lira era esperto e tinha histórias para contar. Também era bêbado e drogado. Morreu com quarenta anos, tuberculoso e com cirrose, com poucos dias de hospital. Os seus amigos telefonaram, queriam uma coroa de flores. Estava em viagem, mas autorizei a despesa e ditei os escritos: “a turma gosta de ti”. Era o que a turma queria dizer.

A menina da bola de vôlei feia
A Lu era cunhada do Lira. Eu a conheci com 12 anos, jogando vôlei com uma bola velha e feia, no meio da rua. Dei-lhe uma nova e cheia de cores. A última vez que a vi, era uma mulher bonita de 16. Eu estava no bar do Varzão, conversava e compreendia o mundo pelo outro lado quando ela passou. Chamada, me cumprimentou, mas foi-se acanhada na primeira oportunidade. Agora me apareceu. Atendi à porta e titubeei. Mas era ela. Queria orientação, alguma conversa sobre estudar, sobre trabalhar, sobre sua situação. Não, eu não tinha que lhe arranjar emprego, só queria trocar ideias com alguém. O escolhido era eu. Conversamos. Gostei e ela também gostou. Nos demos bem.

Desaparecida
São coisas que não entendo. Não sei de onde vem a condição de sensibilidade e de gênio que alguns poucos têm. A Lu do Varzão, cunhada do Lira, do meio da rua, frentista em posto de gasolina, ajudante de pedreiro, aos poucos se foi mostrando, trazendo o que escrevia, e escrevia com jeito. Frequentava livros, e tinha intimidade com muito do que importa. Não era religiosa, dormia tarde, para ler em paz, e queria cursar literatura. Gostava de homens e de mulheres. E como falava: delicado e bem. Então, de nada, não voltou mais. Indaguei. Soube que está dedicada à música. Negou retorno aos meus constrangidos recados de que queria vê-la. Mesmo assim vou procurá-la. Acho que vale a pena ir atrás.

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