Tiago Spengler (*) no Blog Justiça Fiscal
Zé das Couves não era quitandeiro. Tinha esse apelido porque, quando criança, se escondia entre as couves da quitanda do seu pai pra fugir dos guris maiores. Nunca estudou, nunca fez nada de útil. Era um vagabundo, um bandidinho chinelo. Um roubo aqui, uma receptação ali, e assim ia vivendo a sua vida. “Esse guri não tem futuro”, disse seu pai certa vez. E Zé sabia muito bem disso. A bem da verdade, tinha escolhido essa vida – os irmãos todos estudaram e estavam bem de vida. Apesar de viver sempre sem dinheiro, não estava “nem aí”.
Dia desses, Voraz ligou pro Zé: “tenho que falar contigo”. Voraz era o bandidão da área, mas não era gordo nem guloso. O nome de guerra fora ele mesmo que escolhera. “Preciso de um nome que cause medo”, pensou ele rapidamente no dia em que foi preso pela primeira vez. Então se lembrou de uma cena rápida na TV em que o locutor falava “… o leão é forte, resistente e muito voraz…”. Osvaldir (esse era seu nome de nascença) concluiu então que “voraz” devia ser algo assim, tipo feroz, só que dito de forma mais bonita. E quando o policial perguntou seu nome, tascou com ar feroz: “Voraaaz”.
A gozação na delegacia durou dias, e rapidamente se espalhou na região do Osvaldir, que nunca mais deixou de ser o Voraz. Motivo de chacotas no início, com o tempo Voraz realmente se tornou “voraz”, com uma ficha quilométrica, várias passagens pelos diversos presídios do Estado e uma dívida com Deus absolutamente impagável –“ninguém que tira onda do meu nome uma vez continua vivo pra zoar uma segunda”.
“Quê foi, Osvaldir?” – Zé era o único que Voraz deixava chamar pelo nome verdadeiro, e só quando não tinha mais ninguém por perto. “Seguinte: preciso que tu me ajude num esquema”. “E que ‘esquema’ é esse?”. “Não te preocupa, vou te levar uma ‘encomenda’ hoje à noite pra tu guardar por uns dias”. “Beleza”. Zé era chinelo, vagabundo e covarde, e o tal esquema lhe pareceu bem seguro. E apesar de bandido, tinha lá seu orgulho de nunca ter sido pego pela polícia.
Tarde da noite, Voraz chegou com o carrão. “Põe uma capa aí por cima, semana que vem venho pegar”. “Beleza”, disse o Zé, despreocupado como sempre. Só que dessa vez o esquema furou, e algumas horas depois a polícia acordava o Zé aos gritos. “Cadê o carro, vagabundo?!?!?!”. “Ali”, apontou o Zé, vendo que não tinha por onde escapar.
Preso em flagrante por receptação de carro roubado, Zé das Couves até que ficou chateado por ter feito sua primeira entrada numa delegacia. Mas sabia muito bem que isso poderia acontecer. “Roubar coisa dos outros é crime, meu rapaz”, foi o que ouviu do delegado.
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Robert Fair era empresário, e dos grandes. Se chegou onde chegou, era porque tinha colocado todo seu “espírito animal” a funcionar. “O que importa é o lucro”, dizia ele sempre que precisava justificar alguma ação mais “extrema”. Por ação mais “extrema”, entenda-se desde negociações abusivas com fornecedores e clientes de menor porte até a demissão em massa de funcionários, passando pela redução dos tamanhos das embalagens de seus produtos e sabe-se lá mais o quê. “O que importa é o lucro”.
Pois Fair, como gostava de ser chamado (“Fair é um nome muito justo pra mim, não acham?”, ria-se com seus interlocutores após o primeiro gole de uísque), estava preocupado com a queda dos lucros de seu conglomerado, resultado da crise mundial, desvalorização do dólar, competição com os chineses, etc. Convocou uma reunião de seu staff. “Nossos lucros caíram, quero que pensem em uma alternativa criativa, inovadora e rápida para recuperar o que perdemos”.
Passada uma semana, nenhum diretor conseguira pensar em algo ainda não tentado para elevar os lucros, muito menos algo que pudesse dar resultados rápidos como exigira Fair. Até que o mais novo dos diretores, um jovem recém formado em uma grande universidade americana e, dizia-se, com um grande futuro pela frente, tomou a palavra. Ele havia preparado até mesmo um powerpoint, cheio de gráficos, tabelas e belas paisagens. Ao fim de sua explanação todos aplaudiram, mesmo que somente dois ou três tivessem entendido tudo o que o rapaz dissera.
Um desses diretores que entenderam o que estava sendo proposto alertou: “isso pode dar problemas”. “De forma alguma”, rebateu o jovem prodígio, “esse projeto é o que de mais refinado existe em termos de planejamento tributário”. O experiente diretor voltou a dizer: “vai dar problema”. Nisso se ouviu um estrondo. “Você está demitido!”, gritou Fair, irritado com o negativismo do seu agora ex-diretor. Continuou: “Todos sabemos que a carga tributária é escorchante e que o governo usa mal essa dinheirama”. E a proposta do jovem foi implantada. “O que importa é o lucro”, arrematou Fair.
Dois anos depois, uma dupla de engravatados apresentou-se na recepção: “Receita Federal. O sr. Fair se encontra?”. E Fair se encontrava, e a fiscalização iniciou-se, e o “refinado planejamento tributário” revelou-se nada mais do que uma grosseira fraude. “Sonegação, sr. Fair, é crime. Por isso é que consta aí no final do auto de infração que estamos encaminhando uma representação fiscal ao Ministério Público”.
E depois de todo o trâmite administrativo, a representação chegou aos procuradores do Ministério Público, que a partir dos documentos colhidos pelos auditores-fiscais durante a fiscalização e dos inúmeros depoimentos tomados durante o inquérito administrativo aberto a partir da representação, não tiveram dúvidas em ingressar com a ação penal. E o juiz federal que recebeu a denúncia não teve dúvidas sobre a pertinência da ação, e também não teve dúvidas em condenar o sr. Fair e toda sua diretoria pelos crimes cometidos contra a ordem tributária. E na sentença constava: “sonegar tributos nada mais é que roubar de toda a sociedade”.
Com o processo penal ainda em andamento, mas já tendo sido condenado na primeira instância, Fair estava nervoso: “o que será de mim se for condenado? Imaginem, Robert Fair, prestando serviços sociais. E ainda me chamaram de ladrão!”. Foi quando surgiu uma solução para os débitos tributários que lhe atormentavam. “Se parcelar o auto de infração, sr. Fair, em seguida trancaremos esse processo penal”, disse-lhe o tributarista Mário Valério Neves, contratado logo após a demissão do prodigioso jovem diretor de quatro parágrafos atrás.
Condenado em primeira instância por sonegação fiscal, Robert Fair até que ficou chateado por ter que parcelar o auto de infração que resultara da tosca fraude jurídico-contábil que fizera em sua empresa seis anos antes (os processos administrativo e judicial foram consideravelmente rápidos nesse caso). Mas agora sabia muito bem o que poderia acontecer. “Senhores diretores, o sr. MV Neves tem um planejamento tributário infalível para nossa empresa”. “E se tudo mais der errado”, continuou, “é só parcelar”. “O que importa é o lucro”, finalizou. E todos riram até correrem lágrimas dos olhos.
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Para entender melhor essas histórias e o que uma tem a ver com a outra, convém ler a nota “Contribuinte que negocia dívida não será processado”, publicada recentemente no site do jornal Estado de São Paulo, e os posts “Há um dever fundamental de pagar impostos” e “Há risco em sonegar tributos?” publicados neste blog.
(*) Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil
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