Luigi Ferrajoli, festejado jus-filósofo italiano, alerta-nos quanto ao fato de que "um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, como também contradiz sua razão de ser, pondo-se no mesmo nível dos delinqüentes."
Tendemos, sim, a justificar os abusos humanos contra humanos (e animais), procurando alguma explicação razoável para o uso da violência (tanto a moral, chamada no direito devis compulsiva, quanto a física, chamada vis absoluta).
Sem querer polemizar para uma definição entre o “bom selvagem” de J.J. Rousseau e o “homem lobo do homem”, de Thomas Hobbes, é impossível negar nossa natureza violenta, e isso se explicaria por nossa constituição múltipla (corpos físico, emocional, espiritual etc), da qual ainda não temos, por nossa condição evolutiva, pleno controle.
Falando do Brasil, o fato é que, culturalmente, somos um país onde reina a violência. Que me perdoem os que assim não pensam, mas o brasileiro não é um povo tão pacífico como apregoam os ufanistas de plantão. Os números desmentem qualquer tentativa de sustentar essa balela, inventada, qual tantas outras, para vender a imagem de um país idílico, o “paraíso tropical” onde habita o “homem cordial”, ingênuo e honesto.
Não vamos aqui fazer alusão aos índices que nos colocam em posição de destaque negativo no cenário mundial: índices de violência urbana, de violência no trânsito, de contrabando de armas e de drogas, de encarceramento, de corrupção, sem contar, evidentemente, os ignominiosos percentuais relativos à educação, à saúde etc.
Mas o que me evoca esse pessimista intróito é a divulgação de cenas do quotidiano urbano, nada desconhecido de qualquer um de nós, mas que, pela materialização em vídeos difundidos pela mídia e pela web, reforçam um certo desânimo quanto à nossa capacidade de mudar alguma coisa.
Assistam novamente os três vídeos nos links indicados ao final do texto. Os três possuem circunstâncias comuns: os protagonistas são policiais e as vítimas parecem ser (ao menos é a ideia que se passa) criminosos. Nos três vídeos, há uma certeza: os policiais (civis ou militares, isso não é o mais relevante) poderiam perfeitamente ter agido de outro modo, tão eficiente quanto menos violento.
Em um desses vídeos, assistimos policiais agredindo, gratuitamente, um motoqueiro que não teria parado em uma blitz; no outro, policiais cometem similar violência contra jovens acusados de haver cometido um roubo, supostamente para que indicassem onde haviam escondido a arma empregada no assalto; no terceiro, a violência policial é “de gabinete”, deliberadamente filmada, com direito a várias testemunhas.
Aliás, acabo de decidir não reverberar este último vídeo, para não dar ainda maior publicidade à canalhice feita à agente policial que deveria, por óbvio, responder por seus atos ilícitos – e efetivamente respondeu, pois foi demitida – mas não à custa de ser vítima de um procedimento tão humilhante e vil praticado por seus pares. Busquem no you tubeessa filmagem, não será difícil encontrá-la.
Prefiro, de toda sorte, não julgar qualquer dos policiais envolvidos nos três episódios. A natureza de cada um, a formação moral que receberam em suas famílias, o treinamento profissional por que passaram e as injunções e circunstâncias presentes nos momentos retratados talvez sejam variantes a considerar, mas não para desculpar o comportamento igualmente criminoso de que foram atores.
Sem dúvida alguma essas cenas – como inúmeras outras que já nos foram mostradas em nossa triste história de violências policiais – impõem uma correção de rota, que talvez já esteja sendo feita, mas que precisa ser visibilizada e vocalizada pelas autoridades incumbidas da segurança pública (ou, como se diz mais modernamente, da segurança cidadã).
Para fomentar a reflexão de cada um, remeto o internauta à leitura do Relatório da Human Rights Watch, uma análise detalhada de 74 casos de homicídios praticados por policiais do Rio de Janeiro e de São Paulo, dentre um universo mais amplo obtido principalmente nos arquivos do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), das ouvidorias de polícia e de organizações da sociedade civil.
No Resumo do Relatório, que pode ser lido logo nas primeiras páginas, somos informados de que, no combate à criminalidade, sobretudo a que é praticada por grupos e gangues rivais, no RJ e em SP, a Polícia, frequentemente, ao invés de reduzir a violência, acaba por contribuir com ela.
“Em quase todos os homicídios causados por policiais durante expediente no Rio e em São Paulo, os policiais envolvidos reportaram que seus tiros teriam sido atos de legítima defesa, alegando terem atirado somente em resposta a tiros de supostos criminosos. Em São Paulo, esses casos são designados genericamente como “resistência seguida de morte” e no Rio como “autos de resistência”. Dado que os policiais dos dois estados muitas vezes enfrentam uma ameaça real de violência por parte de membros do crime organizado, é provável que muitas dessas “resistências seguidas de morte” tenham sido resultado de fato do uso legítimo de força pela polícia. Muitos casos, no entanto, claramente não foram.
Os dados são alarmantes. Desde 2003, as polícias do Rio e de São Paulo juntas mataram mais de 11.000 pessoas. No Rio, os casos de “autos de resistência” teriam alcançado o número recorde de 1.330 vítimas em 2007. Embora o número registrado de mortes tenha diminuído para 1.137 casos em 2008, a cifra continua assustadoramente elevada, sendo o terceiro maior índice já registrado no Rio. No estado de São Paulo, o número de casos de “resistência seguida de morte”, embora seja menor do que no Rio, também é relativamente alto: durante os últimos cinco anos, por exemplo, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte” no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do Sul (1.623), um país com taxas de homicídio superiores a São Paulo (leia o resumo clicando aqui ou acesse todo o Relatório clicando aqui)
Sem querer polemizar para uma definição entre o “bom selvagem” de J.J. Rousseau e o “homem lobo do homem”, de Thomas Hobbes, é impossível negar nossa natureza violenta, e isso se explicaria por nossa constituição múltipla (corpos físico, emocional, espiritual etc), da qual ainda não temos, por nossa condição evolutiva, pleno controle.
Falando do Brasil, o fato é que, culturalmente, somos um país onde reina a violência. Que me perdoem os que assim não pensam, mas o brasileiro não é um povo tão pacífico como apregoam os ufanistas de plantão. Os números desmentem qualquer tentativa de sustentar essa balela, inventada, qual tantas outras, para vender a imagem de um país idílico, o “paraíso tropical” onde habita o “homem cordial”, ingênuo e honesto.
Não vamos aqui fazer alusão aos índices que nos colocam em posição de destaque negativo no cenário mundial: índices de violência urbana, de violência no trânsito, de contrabando de armas e de drogas, de encarceramento, de corrupção, sem contar, evidentemente, os ignominiosos percentuais relativos à educação, à saúde etc.
Mas o que me evoca esse pessimista intróito é a divulgação de cenas do quotidiano urbano, nada desconhecido de qualquer um de nós, mas que, pela materialização em vídeos difundidos pela mídia e pela web, reforçam um certo desânimo quanto à nossa capacidade de mudar alguma coisa.
Assistam novamente os três vídeos nos links indicados ao final do texto. Os três possuem circunstâncias comuns: os protagonistas são policiais e as vítimas parecem ser (ao menos é a ideia que se passa) criminosos. Nos três vídeos, há uma certeza: os policiais (civis ou militares, isso não é o mais relevante) poderiam perfeitamente ter agido de outro modo, tão eficiente quanto menos violento.
Em um desses vídeos, assistimos policiais agredindo, gratuitamente, um motoqueiro que não teria parado em uma blitz; no outro, policiais cometem similar violência contra jovens acusados de haver cometido um roubo, supostamente para que indicassem onde haviam escondido a arma empregada no assalto; no terceiro, a violência policial é “de gabinete”, deliberadamente filmada, com direito a várias testemunhas.
Aliás, acabo de decidir não reverberar este último vídeo, para não dar ainda maior publicidade à canalhice feita à agente policial que deveria, por óbvio, responder por seus atos ilícitos – e efetivamente respondeu, pois foi demitida – mas não à custa de ser vítima de um procedimento tão humilhante e vil praticado por seus pares. Busquem no you tubeessa filmagem, não será difícil encontrá-la.
Prefiro, de toda sorte, não julgar qualquer dos policiais envolvidos nos três episódios. A natureza de cada um, a formação moral que receberam em suas famílias, o treinamento profissional por que passaram e as injunções e circunstâncias presentes nos momentos retratados talvez sejam variantes a considerar, mas não para desculpar o comportamento igualmente criminoso de que foram atores.
Sem dúvida alguma essas cenas – como inúmeras outras que já nos foram mostradas em nossa triste história de violências policiais – impõem uma correção de rota, que talvez já esteja sendo feita, mas que precisa ser visibilizada e vocalizada pelas autoridades incumbidas da segurança pública (ou, como se diz mais modernamente, da segurança cidadã).
Para fomentar a reflexão de cada um, remeto o internauta à leitura do Relatório da Human Rights Watch, uma análise detalhada de 74 casos de homicídios praticados por policiais do Rio de Janeiro e de São Paulo, dentre um universo mais amplo obtido principalmente nos arquivos do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), das ouvidorias de polícia e de organizações da sociedade civil.
No Resumo do Relatório, que pode ser lido logo nas primeiras páginas, somos informados de que, no combate à criminalidade, sobretudo a que é praticada por grupos e gangues rivais, no RJ e em SP, a Polícia, frequentemente, ao invés de reduzir a violência, acaba por contribuir com ela.
“Em quase todos os homicídios causados por policiais durante expediente no Rio e em São Paulo, os policiais envolvidos reportaram que seus tiros teriam sido atos de legítima defesa, alegando terem atirado somente em resposta a tiros de supostos criminosos. Em São Paulo, esses casos são designados genericamente como “resistência seguida de morte” e no Rio como “autos de resistência”. Dado que os policiais dos dois estados muitas vezes enfrentam uma ameaça real de violência por parte de membros do crime organizado, é provável que muitas dessas “resistências seguidas de morte” tenham sido resultado de fato do uso legítimo de força pela polícia. Muitos casos, no entanto, claramente não foram.
Os dados são alarmantes. Desde 2003, as polícias do Rio e de São Paulo juntas mataram mais de 11.000 pessoas. No Rio, os casos de “autos de resistência” teriam alcançado o número recorde de 1.330 vítimas em 2007. Embora o número registrado de mortes tenha diminuído para 1.137 casos em 2008, a cifra continua assustadoramente elevada, sendo o terceiro maior índice já registrado no Rio. No estado de São Paulo, o número de casos de “resistência seguida de morte”, embora seja menor do que no Rio, também é relativamente alto: durante os últimos cinco anos, por exemplo, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte” no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do Sul (1.623), um país com taxas de homicídio superiores a São Paulo (leia o resumo clicando aqui ou acesse todo o Relatório clicando aqui)
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