Do blog de Rosivaldo Toscano Jr
Excepcional: postarei depois a sentença quando publicado no blog do autor da postagem.
Antes do início da audiência, a vítima pediu para por fim ao processo, pois a coisa já tinha sido restituída, tinha sido reparado o dano pelo seu primo. Eu o informei de que no Brasil tal proceder não era permitido. Ele estranhou, obviamente. E perguntou se sempre era assim. Ficou mais atônito quando eu disse que não. Quando expliquei que se seu primo (que era revel, diga-se de passagem, pois se entregou de vez ao crack) fosse um empresário que sonegou impostos ou que se apropriou dos valores das contribuições previdenciárias dos seus empregados, a reparação do dano teria causado a extinção da punibilidade.
Não julguei o feito em audiência, mas já sabia o que fazer: aplicar o princípio constitucional da igualdade e equiparar o crime de furto, do art. 155 do CP (e o de apropriação indébita, quando ocorrer), ao de apropriação indébita previdenciária, do art. 168-A, do CP. Contudo, precisava fazê-lo com uma base sólida. Precisava estudar a doutrina e a jurisprudência a respeito do assunto.
Em relação à doutrina, pouca coisa. Os manuais, como sempre, tratam acriticamente do assunto. Consultei-os por desencargo de consciência. Fui ao STF. Encontrei alguns poucos casos. Imprimi, li e estudei todos os precedentes. Em todos, repito, em todos eles havia falácias e erros de interpretação que comprometiam a validade ou legitimidade dos argumentos.
Quem estuda a jurisprudência dos tribunais superiores sabe bem que hoje se julga por remissão. A demanda é tão alta que não há tempo para se dedicar aos casos com a atenção que eles merecem. Termina havendo o que chamo de “efeito fórmula pronta”: busca-se apressadamente uns precedentes e, pronto, caso resolvido. Resolvido?
Em poucas palavras, uma vez que num post de blog não dá para fazer maiores digressões, os precedentes mais recentes do STF são os seguintes: HC 91.065/SP, HC n. 75.051 e HC 87.324/SP. O primeiro remete ao seguinte, e assim sucessivamente, bem como a outros bem antigos: RE 88.709, de 1978; HC 47129, de 1969; RCH 49.073, de 1971; RHC 59.033, de 1981; RE 104.270, de 1985.
Isso não seria nada demais, se qualquer dos precedentes, novos ou velhos, servissem para o deslinde da questão. Mas não, porque: 1º - ou tangenciam a discussão, e simplesmente dizem que não pode porque não pode; 2º - e/ou remetem a precedentes impertinentes, que: a) não versam sobre a questão de aplicabilidade do princípio da isonomia; b) ou são anteriores à lei que instituiu a desigualdade de tratamento. Isso é um sintoma de que a práxis judiciária não cuida de verificar a contemporaneidade dos precedentes que usa. Não há uma consciência histórica. Gadamer, no "O Problema da Consciência Histórica", teceu severas críticas a esse modus operandi.
Como bem alertou Rosmar Rodrigues Alencar (Efeito Vinculante e Concretização do Direito), a aplicação do direito no Brasil “evoluiu” assim: 1º - aplicação pura da lei; 2º - descobriu-se a Constituição como fundamento de validade da lei; 3º - aplicação hierarquizada de precedentes de tribunais superiores, com prestígio do efeito vinculante, ainda que não o sejam.
E a “verdade” desce por gravidade, para aqueles se colocam abaixo. Respeitam-se os precedentes sem questionar seus (des)acertos. E a injustiça campeia.
Portanto, sempre é bom se questionar. Questionar as "verdades" promanadas dos discursos jurídicos. A decisão acertada de um caso concreto quase sempre vai além de qualquer fórmula pronta, de qualquer homogeneidade.
No desbravamento de uma decisão justa, a jurisprudência dominante pode até ser um norte. Mas jamais deve ser tomada como timoneiro. Este tem que ser o juiz do caso. Se, na viagem em busca da historicidade de um caso, o juiz navega pelo mesmo mar outrora atravessado pelos precedentes, as águas serão sempre outras... É preciso atenção no vento e no tempo, para que o veleiro siga pela corrente certa. Nessa viagem, Themis pode se dar ao luxo de usar uma venda, mas o juiz, que a conduz, não.
Semana que vem postarei a sentença. Mais uns dias o artigo. Está quase terminado.
Excepcional: postarei depois a sentença quando publicado no blog do autor da postagem.
Esta semana julguei um caso de furto em que o acusado subtraiu um aparelho de DVD da casa de um primo. O rapaz chamou a polícia. Foram a casa dos pais do acusado e lá o aparelho foi devolvido.
Antes do início da audiência, a vítima pediu para por fim ao processo, pois a coisa já tinha sido restituída, tinha sido reparado o dano pelo seu primo. Eu o informei de que no Brasil tal proceder não era permitido. Ele estranhou, obviamente. E perguntou se sempre era assim. Ficou mais atônito quando eu disse que não. Quando expliquei que se seu primo (que era revel, diga-se de passagem, pois se entregou de vez ao crack) fosse um empresário que sonegou impostos ou que se apropriou dos valores das contribuições previdenciárias dos seus empregados, a reparação do dano teria causado a extinção da punibilidade.
Não julguei o feito em audiência, mas já sabia o que fazer: aplicar o princípio constitucional da igualdade e equiparar o crime de furto, do art. 155 do CP (e o de apropriação indébita, quando ocorrer), ao de apropriação indébita previdenciária, do art. 168-A, do CP. Contudo, precisava fazê-lo com uma base sólida. Precisava estudar a doutrina e a jurisprudência a respeito do assunto.
Em relação à doutrina, pouca coisa. Os manuais, como sempre, tratam acriticamente do assunto. Consultei-os por desencargo de consciência. Fui ao STF. Encontrei alguns poucos casos. Imprimi, li e estudei todos os precedentes. Em todos, repito, em todos eles havia falácias e erros de interpretação que comprometiam a validade ou legitimidade dos argumentos.
Quem estuda a jurisprudência dos tribunais superiores sabe bem que hoje se julga por remissão. A demanda é tão alta que não há tempo para se dedicar aos casos com a atenção que eles merecem. Termina havendo o que chamo de “efeito fórmula pronta”: busca-se apressadamente uns precedentes e, pronto, caso resolvido. Resolvido?
Em poucas palavras, uma vez que num post de blog não dá para fazer maiores digressões, os precedentes mais recentes do STF são os seguintes: HC 91.065/SP, HC n. 75.051 e HC 87.324/SP. O primeiro remete ao seguinte, e assim sucessivamente, bem como a outros bem antigos: RE 88.709, de 1978; HC 47129, de 1969; RCH 49.073, de 1971; RHC 59.033, de 1981; RE 104.270, de 1985.
Isso não seria nada demais, se qualquer dos precedentes, novos ou velhos, servissem para o deslinde da questão. Mas não, porque: 1º - ou tangenciam a discussão, e simplesmente dizem que não pode porque não pode; 2º - e/ou remetem a precedentes impertinentes, que: a) não versam sobre a questão de aplicabilidade do princípio da isonomia; b) ou são anteriores à lei que instituiu a desigualdade de tratamento. Isso é um sintoma de que a práxis judiciária não cuida de verificar a contemporaneidade dos precedentes que usa. Não há uma consciência histórica. Gadamer, no "O Problema da Consciência Histórica", teceu severas críticas a esse modus operandi.
Como bem alertou Rosmar Rodrigues Alencar (Efeito Vinculante e Concretização do Direito), a aplicação do direito no Brasil “evoluiu” assim: 1º - aplicação pura da lei; 2º - descobriu-se a Constituição como fundamento de validade da lei; 3º - aplicação hierarquizada de precedentes de tribunais superiores, com prestígio do efeito vinculante, ainda que não o sejam.
E a “verdade” desce por gravidade, para aqueles se colocam abaixo. Respeitam-se os precedentes sem questionar seus (des)acertos. E a injustiça campeia.
Portanto, sempre é bom se questionar. Questionar as "verdades" promanadas dos discursos jurídicos. A decisão acertada de um caso concreto quase sempre vai além de qualquer fórmula pronta, de qualquer homogeneidade.
No desbravamento de uma decisão justa, a jurisprudência dominante pode até ser um norte. Mas jamais deve ser tomada como timoneiro. Este tem que ser o juiz do caso. Se, na viagem em busca da historicidade de um caso, o juiz navega pelo mesmo mar outrora atravessado pelos precedentes, as águas serão sempre outras... É preciso atenção no vento e no tempo, para que o veleiro siga pela corrente certa. Nessa viagem, Themis pode se dar ao luxo de usar uma venda, mas o juiz, que a conduz, não.
Semana que vem postarei a sentença. Mais uns dias o artigo. Está quase terminado.
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