Carnificina pura.
Para quem ficou enjoado com debates insossos no primeiro turno, o encontro da TV Record foi uma prova do quanto a temperatura aumentou na campanha eleitoral.
Que o eleitor não se anime demais. A política continuou de fora das discussões, mas a troca de acusações entre os candidatos foi crescendo em progressão geométrica.
É tanta acusação entre um e outro, nessa reta final de campanha, que seria mais fácil reunir logo Erenice e Paulo Preto e fazer um debate entre eles.
Grande responsabilidade pelo aumento da temperatura da campanha se deve ao emprego, no estertor do primeiro turno, do terrorismo eleitoral, que misturou apego à religião e um discurso do medo.
A grande imprensa, inclusive o incensou, tratando a possível eleição da sucessora de Lula como o início do fim da democracia.
Dilma, é verdade, não se fez de rogada, e no primeiro debate do segundo turno, despejou o seu saco de maldades, de modo a evitar o nascimento de uma onda contrária, que até o momento não se concretizou.
A bem da verdade, ela praticamente jamais se realizou em um segundo turno. A história estatística nos mostra que são raríssimos os casos de virada na segunda fase das campanhas. Quem parte na frente, em regra ganha.
E aquele debate saudável sobre política, quando enfim poderemos conhecer melhor os candidatos porque só sobraram dois, que sempre nos prometem no segundo turno, também raramente acontece.
Mais hora, menos hora, alguém nos saca um discurso do medo provando, por a+b, que a vitória do seu oponente significará certamente o fim dos tempos.
Regina Duarte, em 2002, falou por não mais de um minuto e ainda é lembrada como Gérson na propaganda do "levar vantagem". Eu tenho medo, dizia a atriz, na ante-sala do apocalipse.
Nesta eleição, o terrorismo eleitoral valeu-se em grande parte de anônimos. Uma saraivada de mensagens eletrônicas dispersas, mas profundamente organizadas, foi disparada para incutir dúvidas e espalhar medo. A campanha depreciativa, com discutível grau de eficiência, difundiu um sem-número de mentiras eleitorais.
Mais do que simplesmente votos, a baixaria oculta conquistou a raiva, que, na democracia, tem sido sempre uma péssima conselheira.
A escalada da disputa contou com quase-agressões de militantes a ambos os candidatos, e ainda, alimentada pela idéia de um fim que justifica os meios, foi valorizada ela mesma como artifício para captação de mais votos.
O discurso do medo, o terror eleitoral, a ênfase desmedida na acusação ao adversário, não são apenas elementos insuficientes para ganhar uma eleição. São nocivos para o que fazer depois dela.
Toda eleição é uma confirmação da democracia. O pleito deve ser, sobretudo, um processo civilizatório. Para nós, que de tempos em tempos sofremos com interrupções autoritárias, páginas infelizes da nossa história, cada eleição é sempre uma vitória.
Mandato após mandato, confirmamos nossa crença de que as disputas podem ser decididas de forma livre pela vontade dos eleitores.
A idéia de alternância do poder não significa que devamos mudar de governo a cada quatro anos, mas a possibilidade de fazê-lo se assim quisermos, o que não é pouca coisa.
A instituição do segundo turno teve como meta exatamente a criação do maior consenso em torno do vitorioso. Pretendia-se evitar que um candidato com altos índices de rejeição pudesse ser eleito, no contexto de uma campanha excessivamente fragmentada. E ao mesmo tempo, fazer com que o novo presidente tivesse maior legitimidade.
Como a abstenção tradicionalmente aumenta, e o percentual de votos nulos também, não passa de uma abstração a idéia de que o presidente terá sido votado por cinqüenta por cento mais um dos eleitores.
E todo o benefício político de um segundo turno legitimador se perde com uma campanha que, em busca de votos desesperados, prenuncia o fim do mundo e estimula a ira entre os adversários. Quem quer que ganhe acaba tendo uma rejeição maior do que no final do primeiro turno.
É de política que se trata uma eleição presidencial. Em regra, como em todas as outras partes do mundo, discute-se basicamente o modelo de Estado que queremos. Os partidos têm visões diferentes sobre as dimensões e funções do Estado e os governos que suas experiências revelam o demonstraram na prática.
Não precisamos transformar diferenças em preconceitos e nem reduzir a política ao ódio.
Quem tem que sair vitorioso numa eleição é sempre o país.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
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