FOLHA - A que o senhor se refere quando fala do risco do novo populismo para as democracias europeias?
ROSANVALLON - O fenômeno dominante nas sociedades europeias há 20 anos é o desenvolvimento de partidos de extrema direita. O que choca é que esses partidos não cresceram só onde havia uma tradição extremista de direita, como na França e na Itália, mas também nas democracias mais sociais, como a Suécia, onde o partido de extrema direita ganhou 6% dos votos e conseguiu a posição de árbitro no Parlamento. Foi o mesmo caso na Bélgica e na Dinamarca.
Há neste momento uma fragilização do contrato social na Europa, que era a social-democracia, uma certa ideia de distribuição. Há um enfraquecimento desse contrato e surge como compensação negativa esse avanço da extrema direita, que não procura encontrar uma redefinação da igualdade, mas sim definir um novo conceito de homogeneidade das sociedades europeias.
Há uma grande distinção a fazer entre a noção de igualdade e a de homogeneidade. A igualdade pressupõe um trabalho sobre as diferenças na sociedade, reconhece as diferenças. A homogeneidade pressupõe como cimento social a expulsão da diferença. É um jeito perverso e patológico de recriar o cimento social.
Como vê o estado da democracia na América Latina e que papel o Brasil desempenha nesse contexto?
As democracias da América Latina saíram de décadas de mal-estar, após o ciclo de ditaduras. Há um reeingresso em formas mais estáveis de democracia e, ao mesmo tempo, essas democracias ainda são frágeis. Essa fragilidade é vista nas incertezas que existem hoje na Argentina, por exemplo, ou na evolução do regime venezuelano. Há uma confusão entre democracia eleitoral e democracia liberal.
A força do Brasil, como a do Chile, é que as instituições funcionam muito bem. O Brasil se tornou um país pluralista, com instituições que saíram da simples utopia eleitoral. Mas a democracia brasileira, como as outras latino-americanas, ainda é uma sociedade onde o caráter democrático é problemático. Como se tornar uma sociedade democrática sem passar pelo Estado providência? Essa é a questão também da China, como da Índia.
Nisso o Brasil e a Índia têm um papel especial, porque a China não é uma democracia eleitoral. O Brasil tem um papel não apenas na cena diplomática e econômica, mas na reflexão coletiva sobre o futuro do democracia.
O senhor também falou da ameaça "socrática", da limitação à visão liberal das instituições, que teriam o papel de regular e moldar a vontade popular. Esse debate se aplica ao Brasil?
Quando falo de ameaça socrática é preciso lembrar que historicamente as democracias europeias funcionaram sobre dois pilares, o sufrágio universal e o Estado racional, a administração pública. A memória do positivismo é forte o suficiente no Brasil para que a ideia de República seja ligada não ao sufrágio universal, mas à do Estado racional.
Essa definição da democracia baseada no serviço público --isto é, uma definição substancial do interesse geral-- e no voto universal --que seria uma definição de procedimento-- parece boa.
Mas hoje em dia é preciso ir mais longe. Precisamos de outros tipos de instituição porque o Estado racional também foi capturado por interesses particulares. E a democracia não é apenas o poder dos sábios, o poder de regulação, que é uma espécie de proteção da sociedade, mas também um poder de instituição.
E aí retomamos a questão fundamental que está na base da democracia que é, de um lado, dar a palavra a todos que não a têm e, do outro, construir essa sociedade dos iguais.
No Brasil há uma ideia, como nos EUA do início do século 19, da civilidade democrática, a famosa cordialidade brasileira. Mas o Brasil é também o país da desigualdade cordial. A civilidade tem um papel, mas não podemos fazer com que a sociedade dos iguais repouse apenas nos braços da cordialidade nem do amor comum pelos ídolos do futebol, por exemplo.
O nacionalismo é um risco aqui também?
A primeira definição de nação vem de uma reflexão sobre a constituição de laços sociais. Isso podemos dizer que é a nação democrática, a nação positiva. O nacionalismo do fim do século 19 se transformou na nação da exclusão, que se define contra os outros.
Mas isso não é uma tentação brasileira, porque o Brasil nunca foi um país em guerra, não foi fundado sobre uma cultura da exclusão, mas de uma espécie de cultura de separatismo. A secessão dos ricos, social, é visível quando subimos ao Pão de Açúcar.
Como o senhor vê a figura do presidente Lula e sua atuação no governo?
É inegável que o governo de Lula teve uma ação do tipo distributivista. Mas o Brasil estava tão longe de qualquer coisa do tipo que não chega perto de ser um Estado providência do tipo europeu. Então foi apenas um primeiro momento. A questão aberta é como proceder à segunda etapa. Ela pode incluir elementos do Estado providência, porque há dinheiro com o pré-sal, mas é preciso achar outras coisas.
Uma característica que chama atenção de um observador europeu é o fato de Lula terminar seus dois mandatos com 80% de aprovação. E a única explicação é do tipo sociólogo. Claro, seu governo fez coisas que foram criticadas, como muitos outros, e por isso acho que esses 80% provavelmente não querem dizer que sua atuação foi considerada excepcional por todos.
Mas há uma coisa que conta na política é que ele continua a encarnar a sociedade dos esquecidos e uma parte da nova sociedade de classe média, que podem dizer que ele é como a gente.
Muitas vezes a política era conduzida pelas elites sociais. Então esse elemento de identificação, de poderem dizer que há alguém como nós, continua a se manifestar em sua popularidade.
A social-democracia é uma condição para a democracia plena? Há alternativas à democracia ou ela é a última palavra?
A democracia é a última palavra porque ela vai se enriquecendo e se generalizando, é um processo.
A social-democracia foi um momento de construção da democracia. As democracias europeias se confuniram com a ideia social-democrata, no sentido geral do termo.
Quanto às outras democracias, elas devem passar por essa etapa de redistribuição, mas ela é apenas um dos elementos de redefinição da igualdade democrática, que tem também dimensões jurídicas etc.
Os imperativos de um mundo ambientalmente equilibrado poderão se ajustar ao exercício pleno da democracia?
A ecologia introduz o longo prazo e a natureza na democracia. Ela faz parte de uma questão geral sobre o futuro da democracia.
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