Do Aurora de Niestzche por Renata Rodrigues Ramos
Ontem, na saída do salão de beleza, uma menina de uns seis anos me chamou a atenção. Ela entrou no ambiente com sua mãe; ambas não conseguiram esconder a origem humilde e o descompasso diante daquele ambiente “hostil”.
A mãe perguntou, ao gerente do salão, se, naquele local, cabelos podiam ser vendidos. No mesmo instante, a menina olhou para o chão - completamente envergonhada. O gesto foi absolutamente revelador: o cabelo comprido e loiro tinha que ser vendidos nesse Natal.
Os olhos da menina a denunciavam: ela não queria vender seu cabelo de maneira nenhuma; contudo, a necessidade as obrigava a vendê-lo.
Com efeito, a princesa queria apenas sentar no trono - seu por direito - para que o cabelo fosse enfeitado e recebesse tranças e carinhos; queria apenas adentrar naquele ambiente e sair dali penteada para, quem sabe, esperar o Papai Noel na noite de Natal.
A vergonha da pequena princesa me despedaçou, porquanto isso me arrasa: ver a constante perda de dignidade dos meus iguais, que - muitas vezes - se submetem a subjugações por completa necessidade.
Compreendo dignidade como valor perolado, que não possui preço; dignidades não são mercadorias. Ao contrário, a dignidade é um atributo dos homens, independentemente de qualquer condição (cor, raça, religião, etc).
A dignidade é a qualidade que nos diferencia de todas as demais coisas, como já afirmava Kant, para quem “todas as coisas possuem preço, já o ser humano - por sua vez - possui dignidade.”
Agamben, em “O que resta de Auschwitz” vale-se do esboço formulado por Levinas, em 1935, a respeito da vergonha. Para Levinas, “a vergonha não decorre, como acontece na doutrina dos moralistas, da consciência de uma imperfeição ou de uma carência de nosso ser frente à qual tomamos distância. Ao contrário disso, a vergonha se assenta na impossibilidade de nos ‘dessolidarizar-mos’ de nós mesmos, na absoluta incapacidade de ruptura de nosso ser consigo próprio. Impossibilidade radical de fugirmos de nós para nos esconder de nós mesmos, a presença irremissível do eu frente a si mesmo.” [...]. De acordo com Levinas, “é a nossa intimidade, ou melhor, a nossa presença a nós mesmos que é vergonhosa. Ela não desvela o nosso nada, mas a totalidade da nossa existência… O que a vergonha descobre é o ser que se descobre.”
Como não se envergonhar, diante da venda daquilo que não possui preço? A menina não conseguiu esconder-se dela mesma; não existia um lugar para onde pudesse fugir do seu abismo.
A vergonha da menina é a minha angústia.
Sei que não posso suprir as necessidades elementares dos seres humanos, de maneira a impedir que vendam a sua dignidade; todavia, posso me recusar - sempre - , a tirar a dignidade dos meus iguais.
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