O único filme obrigatório de 2006 é Estamira, impressionante depoimento de uma senhora que sobrevive num lixão do Rio de Janeiro. Estamira é um soco no estômago: choca pelo que tem de novo e também pelo que tem de antigo. Em 1958, um jovem repórter, Audálio Dantas, decidiu conhecer de perto uma favela de São Paulo, para retratar um cotidiano que poucos conheciam, na época. Audálio descobriu Carolina de Jesus, personagem que virou reportagem, depois livro e peça de teatro e, até morrer, foi um desses símbolos eternos da desigualdade brasileira.
Há uma semelhança óbvia entre Estamira e Carolina de Jesus. Ambas são mulheres, negras e miseráveis. Há diferenças notáveis, também. Aos olhos de hoje, a pobreza de Carolina de Jesus era uma realidade quase poética, em seus barracos de madeira e uma cidade que ficava genuinamente comovida com sua infelicidade. O retrato de Carolina de Jesus desenhava uma tragédia social que era chocante porque parecia passageira e fácil de ser consertada. Era um Brasil otimista e generoso que olhava para ela, apesar de tudo. A miséria de Estamira é mais sofrida e repulsiva. Se a primeira catava papel, a segunda vai direto ao lixo em busca de detritos. O olhar que mostra Estamira é pessimista, derrotado. Carolina de Jesus foi saudada de modo generoso, com uma certa culpa. Estamira é vista com temor, assombro — e medo. Se o país que acolheu Carolina de Jesus acreditava-se solidário, o Brasil de Estamira perdeu a vergonha do próprio egoísmo.
A pedido do blogue, Audálio Dantas foi ver o Estamira. Consultou seus arquivos sobre Carolina de Jesus. Ele nos enviou as fotos da própria Carolina de Jesus. Uma das fotos mostra a atriz Ruth de Souza, representando a personagem em “O Quarto de Despejo,” encenada em 1961. A última foto é do próprio Audálio na favela, conversando com Carolina de Jesus. Ele também é o autor do texto que publicamos a seguir, e que serve de instrumento para nossa reflexão:
Há uma semelhança óbvia entre Estamira e Carolina de Jesus. Ambas são mulheres, negras e miseráveis. Há diferenças notáveis, também. Aos olhos de hoje, a pobreza de Carolina de Jesus era uma realidade quase poética, em seus barracos de madeira e uma cidade que ficava genuinamente comovida com sua infelicidade. O retrato de Carolina de Jesus desenhava uma tragédia social que era chocante porque parecia passageira e fácil de ser consertada. Era um Brasil otimista e generoso que olhava para ela, apesar de tudo. A miséria de Estamira é mais sofrida e repulsiva. Se a primeira catava papel, a segunda vai direto ao lixo em busca de detritos. O olhar que mostra Estamira é pessimista, derrotado. Carolina de Jesus foi saudada de modo generoso, com uma certa culpa. Estamira é vista com temor, assombro — e medo. Se o país que acolheu Carolina de Jesus acreditava-se solidário, o Brasil de Estamira perdeu a vergonha do próprio egoísmo.
A pedido do blogue, Audálio Dantas foi ver o Estamira. Consultou seus arquivos sobre Carolina de Jesus. Ele nos enviou as fotos da própria Carolina de Jesus. Uma das fotos mostra a atriz Ruth de Souza, representando a personagem em “O Quarto de Despejo,” encenada em 1961. A última foto é do próprio Audálio na favela, conversando com Carolina de Jesus. Ele também é o autor do texto que publicamos a seguir, e que serve de instrumento para nossa reflexão: