"A visão economicista que subjaz a eficiência, e o utilitarismo subsequente, despersonaliza o direito. Tira o humano do seu centro de atenção. E isso é muito perigoso quando estamos a julgar pessoas. Números são abstratos. Pessoas são concretas. Números se somam, dividem-se, multiplicam-se, subtraem-se. Pessoas sofrem. O processo penal é sempre um sofrimento tanto para o acusado quanto para a vítima. Quando julgamos pessoas, o significante primordial tem que ser outro:dignidade."
Vivemos, numa época em que muito se fala de eficiência no serviço público, de racionalidade, em redução de custos e em incremento de resultados. Fala-se em gestão pública dirigida a fins e com a adoção de referenciais oriundos da iniciativa privada. O princípio da eficiência – atingir os melhores resultados com o mínimo esforço – se torna sinônimo do que é moderno, útil e indispensável.
No mundo dos negócios, e em uma época de predomínio do capitalismo financeiro, a eficiência é a própria razão de ser da atuação das instituições privadas, pois o lucro, o superávit financeiro, o aumento da riqueza, são os objetivos a serem perseguidos a todo custo.
No processo penal, quando o significante principal se torna a eficiência, condiciona toda a cadeia de significantes que virão: agilidade, economia, informalidade, lucro, aumento de riqueza, resultados. O utilitarismo presente na ideia de eficiência, aliás, termina por se tornar um padrão de conduta inevitável. Isso é um perigo aos direitos fundamentais. Vou explicar.
Contudo, desde já alerto que não sou contra a eficiência. Aliás, vou dar o meu lugar de fala: a Vara Criminal em que atuo tem cerca de 1/4 dos feitos que havia quando assumi a titularidade, em outubro de 2008. Os processos estão em dia e já julguei vários casos em menos de 50 dias – do fato à sentença. Tenho MBA em Poder Judiciário, elaborei e executei um planejamento estratégico que hoje compõe o Banco de Boas Práticas de Gestão do Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (vide aqui). E as rotinas adotadas e implantadas na Vara terminaram servindo de paradigma para as demais Varas Criminais do RN, pois culminaram no Manual de Rotina das Varas Criminais, em que eu e duas servidoras da Vara fomos coautores.
Posso dizer que observo o princípio da eficiência, portanto. E ele é, inegavelmente, importante. Mas, ao contrário da ideia hoje reinante, não entendo que é a razão de ser do Judiciário em sua atuação. A função primordial do juiz é, sempre, e inexoravelmente, de garantia. E essa função, como será vista abaixo, não se confunde com o significanteeficiência e sim com o dignidade.
Para conseguir os resultados acima, nunca elevei o princípio da eficiência como o primevo, ou mais relevante, da cadeia de significantes porque sei que o mais importante condicionará os demais que daí surgirem na práxis processual penal. O significante primevo delimita o modo de se enxergar todos os fatos processuais. Em um sentido literário-poético, o significante primeiro é o mote. A glosa se dá a partir dele. Portanto, está na formação dos pré-juízos (no sentido linguístico-gadameriano de pré-concepções do juiz) que condicionarão a interpretação dos textos jurídicos. Condicionará toda uma forma de enxergar o mundo e, por conseguinte, a condução, pelo juiz, dos atos do processo e a consideração (ou não) dos direitos fundamentais na geração da norma para o caso concreto.
Diante da inevitável adoção de um significante primeiro, considero o princípio da dignidade da pessoa humana como o mais importante e do qual derivam, na esfera criminal, o devido processo legal, o in dubio pro reo, o favor rei, a ampla defesa, o contraditório e tantos outros.
Assim, por exemplo, evito ao máximo reaprazar audiências não porque fere a eficiência, mas porque as pessoas que se deslocam ao fórum (réus, vítimas, testemunhas ou familiares e amigos), merecem respeito e porque sei que, não raras vezes, algumas delas tiveram que escolher entre usar o dinheiro para tomar o ônibus para vir ou comprar o pão do café da manhã.
Sob a mesma ótica da dignidade da pessoa humana, entendo que o processo deve ser ágil não porque precisa ser eficiente, mas porque o acusado merece uma decisão em tempo razoável para por fim ao martírio da incerteza de se estar réu. E também porque a vítima merece ser respeitada a tratada com a atenção devida. Enfim, ter sua dignidade também considerada. Ambos são gente e não meras estatísticas.
Da mesma forma, o juiz pode até deixar preformatado o relatório da sentença, logo antes da audiência de instrução e julgamento. Isso é ser eficiente. Mas estaria ferindo a dignidade da pessoa humana (e o contraditório e a ampla defesa) se já deixa previamente pronta a sentença condenatória ou começa a aplicar a pena quando sequer a defesa terminou de falar em suas alegações finais, por mais que a condenação seja regra e a absolvição exceção. Isso porque é preciso o juiz ter abertura para eventuais questões apresentadas pela defesa e surgidas nas suas últimas palavras. Ouvir é respeitar.
Por fim, pela ótica da eficiência se sustentaria a legalidade do flagrante obtido após a entrada ilegal em uma casa, se foi encontrada arma ilegal ou drogas. Pela ótica utilitarista, seria até eficiente tal resultado, uma vez que o fim perseguido foi alcançado com a entrada na casa, ainda que não existisse o conhecimento do flagrante antes do ingresso no imóvel. Mas sob a ótica da constitucional inviolabilidade do lar, jamais se admitiria.
A eficiência tem como referente o significante valor. Sob o pretexto de um maior valor a ser obtido, justifica-se uma determinada conduta. Há coisas que tem mais ou menos valor e o sacrifício de uma se justifica diante do valor maior de outra.
A visão economicista que subjaz a eficiência, e o utilitarismo subsequente, despersonalizam o direito. Tiram o humano do seu centro de atenção. E isso é muito perigoso quando estamos a julgar pessoas. Números são abstratos. Pessoas são concretas. Números se somam, dividem-se, multiplicam-se, subtraem-se. Pessoas sofrem. O processo penal é sempre um sofrimento tanto para o acusado quanto para a vítima. Quando julgamos pessoas, o significante primordial tem que ser outro: dignidade.
Haja vista que em nosso Estado Democrático de Direito não se admite (ao menos formalmente) a escravidão, não posso, sob a ótica dos direitos fundamentais e, em especial, sob o princípio da isonomia, entender que uma pessoa vale mais do que outra. Aliás, coisas tem valor. Maior ou menor. E há coisas que sequer algum valor possuem. Mas gente não. Gente é diferente. Gente tem dignidade. E dignidade não tem preço.
* Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito em Natal-RN e membro da Associação Juízes Para a Democracia - AJD
* Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito em Natal-RN e membro da Associação Juízes Para a Democracia - AJD
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