Por Marcelo Semer
-O senhor vai ser interrogado em um processo crime e não tem obrigação de responder as perguntas que eu lhe faço. É sua chance de defesa, o senhor entendeu?
O silêncio do réu indicava que não.
Ele ensaiou balançar a cabeça, mas pelo que percebi ficou em dúvida para que lado.
Eu repeti a frase padrão que antecedia a todos os interrogatórios e servia de alerta para o direito ao silêncio. Ivan, que estava mais preocupado em falar do que ficar quieto, me indagou:
-Mas eu posso ou não apresentar a minha versão?
O interrogatório do réu passou por diversas transformações nos últimos anos.
Quando comecei a julgar, era um ato privativo do juiz. O promotor e o advogado podiam estar presentes, mas dele não participavam.
Eu costumava atenuar essa proibição, permitindo ao advogado que fizesse, querendo, perguntas por meu intermédio, mas a maioria não insistia. Aliás, a maioria nem tinha advogado. Somente depois do interrogatório é que era nomeado o defensor público.
De lá pra cá, pode-se dizer que o processo penal evoluiu muito.
Primeiro com a presença do advogado. Depois, que ele pudesse participar com perguntas. Finalmente, o interrogatório foi transferido para o fim do processo, para que o réu tivesse conhecimento de todas as provas produzidas contra ele, antes de oferecer a sua versão.
O interrogatório ao final é uma garantia ao réu. Mas esvaziou um pouco o ato, porque depois de todas as testemunhas prestarem seus depoimentos e o réu submeter-se a reconhecimento pessoal, muito da convicção do juiz sobre o processo já estava formada.
As teses de defesa se insinuavam nas perguntas do advogado ou na própria escolha das testemunhas.
Com a robustez das provas, o interrogatório ao final fez por revigorar a confissão, como uma forma de abrandar a pena, reduzir danos.
Era mais ou menos nessa situação que estava Ivan.
Seu advogado imprudentemente antecipara este propósito, desde que Ivan foi reconhecido por todas as vítimas. Como era reincidente, ele pretendia compensar o acréscimo da pena com a confissão.
Mas não havia combinado bem com os russos.
Quando Ivan me perguntou se podia dar a sua versão, o advogado sussurrou-lhe uma orientação que eu só fui conhecer ao término da audiência, confidenciado pela minha escrevente:
-Não inventa!
Naquele exato momento era Ivan e não o advogado o dono da palavra, todavia.
-Olha doutor, ele me dizia, eu peguei sim as camisas. Mas roubar eu não roubei...
O advogado demonstrou o primeiro desconforto. Começou a se mexer na cadeira e segurar nervosamente seus óculos, pensando no que viria a partir daí.
-A polícia me pegou com as camisetas na mão, é verdade. Eu joguei elas pra cima quando o policial me abordou. Mas eu não sabia que estava acontecendo um roubo...
O advogado levantou-se abruptamente da cadeira e sem saber o que fazer, foi até o fundo da sala. Pigarreou, ensaiou sair e voltou, sem conseguir controlar a aflição e a sua contrariedade.
Naquele exato momento, acredito que Ivan estaria em piores mãos se ao invés de mim, viesse a ser julgado por seu próprio advogado.
A história não tinha muito nexo, nem era crível, porque ele havia sido reconhecido por três vítimas como um dos assaltantes que entrara na loja. De fato, não estava armado, mas pegava as camisas, enquanto os outros faziam os funcionários reféns. Na saída, foi flagrado literalmente com a mão na massa e tal como uma cena de filme pastelão, jogou as camisas sobre o policial e tentou fugir. Em vão.
Mas, para mim, e para o processo, sua versão era a de que apenas pegara as roupas para levar, supondo que elas estivessem sendo compradas. Não admitia o roubo.
O advogado não aguentou a rebeldia do réu e tentou intervir.
Primeiro, disse que Ivan não estava entendendo bem a pergunta, alegação que era no mínimo constrangedora.
Depois, fugindo à praxe dos interrogatórios, se aproximou do réu e cochichou algo no seu ouvido.
Mas se conversando com ele, antes do interrogatório, cara a cara, não lhe fizera entender a estratégia, como supor que um rápido sussurro ia dar conta da situação?
-Bom, doutor -ensaiou o réu um retorno- eu sabia que tinha alguma coisa de errado com as camisas...
E antes mesmo que o advogado pudesse terminar seu suspiro de alívio, emendou:
-Mas achei que era de contrabando.
Foi o que bastou.
-Pela ordem, excelência, pela ordem... -bradou o advogado.
O réu, assustado, não entendia direito o que se passava. Diversamente de tudo a que havia se preparado, quem olhava feio e gritava com ele não era o juiz. Mas o seu próprio advogado.
Foi aí eu que eu resolvi intervir –não aguentei o paroxismo da situação nem a agonia do doutor.
Na verdade, a versão de Ivan era o pior dos dois mundos. Confirmava, em essência, a prova da acusação –sim, era ele mesmo que estava lá no momento do roubo- e apresentava, em contrapartida, uma alegação que estava longe do aceitável. Nem era o bastante para eximi-lo do crime, nem o suficiente para reduzir sua pena.
-Senhor Ivan. Seu advogado aqui está insatisfeito com a versão que o senhor está apresentando, o senhor sabe porque?
Não, ele de fato não sabia.
-Porque ele gostaria que o senhor confessasse para que pudesse obter uma redução na pena. Não é grande, mas o suficiente para o senhor receber a pena mínima. E a versão que o senhor está me dando não é propriamente uma confissão. O senhor entendeu?
Desta vez ele balançou a cabeça. Para um lado e para o outro.
Não era mesmo fácil de entender, principalmente sendo o juiz a fazer tal advertência.
Por fim, permiti que o desesperado advogado explicasse para ele e depois de uns minutos, refiz a pergunta que Ivan me respondeu, com certo constrangimento:
-É, doutor, então é isso mesmo, é tudo verdade...
A confissão não foi lá tão voluntária. Mas eu abaixei a pena assim mesmo. E todos saíram mais ou menos satisfeitos.
Da minha parte, nunca perdi a sensação de que prometer um benefício a alguém em troca de uma confissão não passava de uma forma um pouco mais sofisticada de violência.
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