18 de nov. de 2011

A política antidrogas portuguesa

João Goulão na Isto é

CRACK NO BRASIL

"A motivação para o tratamento poderia ser trabalhada", diz
Adetenção de três jovens fumando maconha no campus da Universidade de São Paulo motivou a rebelião dos estudantes – que terminou na delegacia – contra a polícia nas últimas semanas. Como tratar a questão das drogas é um tema sempre polêmico no Brasil, por isso a experiência internacional pode ser útil para o País. Atualmente, Portugal tem um dos melhores modelos do mundo de prevenção e combate aos entorpecentes. Apesar de a descriminalização do consumo ser o item de maior visibilidade, o sucesso do programa passa pela criação de uma rede específica para o dependente. “Faz mais sentido tratar uma pessoa doente no sistema de saúde do que no prisional”, afirma o médico português João Goulão, 56 anos, presidente do Conselho de Administração da Agência Europeia de Informação sobre a Droga (OEDT) e do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) de Portugal. Para o especialista, só descriminalizar o consumo não resolve. “O fenômeno da droga tem de ser abordado por um órgão, a Justiça ou a Saúde. Não podemos retirá-la da Justiça e não ter as respostas da Saúde”, diz ele, que há 30 anos trabalha na recuperação de viciados.
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"Quanto mais cedo prevenirmos o consumo de álcool, menor a
probabilidade de a pessoa se tornar viciada em qualquer coisa"
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"Antes tínhamos 100 mil usuários de heroína, hoje não chegamos aos 30 mil.
As drogas eram a primeira preocupação dos portugueses, hoje ocupam o 13º lugar"
JOÃO GOULÃO -
A escalada começa com bebida alcoólica, cigarro e maconha. Mas não é, necessariamente, sempre assim. Hoje, as pessoas têm procurado direto as drogas mais prestigiadas: estimulantes, como a cocaína e o ecstasy. Felizmente, a heroína está desprestigiada; os jovens assistiram à destruição das gerações anteriores, a depauperação física e mental, e a rejeitam. Infelizmente, o perfil do usuário da heroína é bastante semelhante ao do crack no Brasil. O fato é que, quanto mais cedo prevenirmos o consumo de álcool, menor a probabilidade de a pessoa se tornar viciada em qualquer coisa. 
ISTOÉ -
Maconha é uma droga leve?
 
JOÃO GOULÃO -
Maconha não é mais uma droga leve. A maconha hoje tem uma concentração do seu princípio psicoativo, o THC, muito maior do que dez anos atrás. Aliás, nenhuma droga pode ser considerada leve. O que realmente interessa é a importância que a droga ganha na vida da pessoa. Se for dependente da substância, pouco importa que ela seja leve ou pesada. Por isso descriminalizamos o consumidor de todas as drogas. 
ISTOÉ -
Como a lei da descriminalização do consumidor foi implantada em Portugal? 
JOÃO GOULÃO -
A descriminalização foi proposta por uma comissão da qual fiz parte, passou no Parlamento e a lei entrou em vigor em 2001. O impacto das drogas na vida da comunidade baixou drasticamente. O problema da toxidependência era tão devastador que, quando aconteceu a descriminalização, o povo apoiou, pois quase todos tinham dependentes na família. Costumavam dizer: “Meu filho não é um bandido. É um desgraçado.” Antes tínhamos 100 mil usuários de heroína, hoje não chegamos aos 30 mil. A criminalidade ligada à dependência baixou. Tanto que, hoje, as drogas, que eram a primeira preocupação dos portugueses, ocupam o 13º lugar.
 

ISTOÉ -
Antes da lei o que era feito com os dependentes?
 
JOÃO GOULÃO -
Iam para o tribunal. Na maior parte dos casos, não eram condenados à prisão. Os juízes optavam por penas alternativas ou tratamento compulsório em unidades terapêuticas. Não existe nada pior do que uma lei que não é cumprida. A lei determinava a reclusão, mas os dependentes não eram condenados à cadeia. 
ISTOÉ -
O sr. acredita que Brasil esteja preparado para descriminalizar o consumo de drogas?
 
JOÃO GOULÃO -
Eu diria que no Brasil há uma carência de respostas públicas. O fenômeno da droga e da dependência tem de ser abordado por algum órgão, a Justiça ou a Saúde. Não podemos retirá-la da Justiça e não ter as respostas da Saúde. As próprias autoridades policiais, ao terem uma abordagem mais amigável em relação aos usuários, necessitam de estruturas de saúde que possam se ocupar deles. Senão, fica o vazio: nem há perseguição policial nem oferta de tratamento. 
ISTOÉ -
A tolerância com as drogas no mundo do entretenimento não é uma influência negativa para os jovens? 
JOÃO GOULÃO -
É um mau modelo. Procuramos contrabalançar isso convidando alguns artistas para participar de campanhas. O problema é que depois se descobria que eles também eram usuários. O nosso trabalho preventivo é permitir que as pessoas façam suas escolhas informadas. Usar ou não usar é uma questão individual. Mas consciente dos riscos.
 
ISTOÉ -
Como funciona a política de drogas em Portugal?
 
JOÃO GOULÃO -
O sistema de cuidados com a saúde dos toxicodependentes é dos mais perfeitos do mundo. Pena que somente seja referida como exemplar a questão da descriminalização, que está longe de ser a nossa melhor estratégia. É apenas um componente importante, mas só demos esse passo depois de termos fixado a responsabilidade de lidar com o problema no Ministério da Saúde mais do que no Ministério da Justiça. O dependente é doente, precisa de ajuda médica e não de prisão. O interessante da descriminalização foi tornar nosso sistema coerente. Temos uma população de dez milhões de habitantes e uma rede de saúde dedicada apenas aos usuários de drogas que envolve cerca de dois mil profissionais, 70 unidades de ambulatório em todo o país e mais de 100 unidades terapêuticas com cerca de dois mil lugares disponíveis. Tudo gratuito.
 
ISTOÉ -
E qual é o papel da polícia nesse processo? 
JOÃO GOULÃO -
É assim: o usuário está consumindo a droga e é interceptado pela polícia. Dali, é conduzido à delegacia, onde é identificada a substância. Se tiver mais do que a quantidade considerada para uso pessoal, presume-se que seja tráfico e ele vai para o sistema criminal. Existe uma tabela para cerca de dez dias de consumo que dá 15 gramas de maconha, cinco de haxixe, uma de heroína, etc. Se tiver menos, é usuário e será intimado pela polícia a se apresentar em uma comissão do Ministério da Saúde chamada Comissão para Dissuasão da Toxicodependência, constituída por um jurista, um psicólogo e um assistente social. A pessoa é obrigada a se apresentar em três dias. Primeiro, avalia-se se é um dependente ou um consumidor de ocasião. No caso do dependente, a comissão o convida para se tratar. O dependente vive dividido entre o desejo de parar e a vontade de consumir. Um pequeno empurrão pode ser determinante para que se aproxime do sistema de saúde ou da droga. 
ISTOÉ -
Não fica o registro da passagem dele na polícia? 
JOÃO GOULÃO -
Se o dependente aceitar o tratamento, o processo é suspenso por alguns meses e não é aplicada nenhuma sanção. Se nesse período ele não voltar a ser interceptado pela polícia consumindo droga, o processo é extinto, sem deixar rastro, registro criminal, sem mancha alguma na vida pregressa dele. 
ISTOÉ -
E se for pego novamente? 
JOÃO GOULÃO -
 Aí pode ser aplicada uma penalidade. No caso do dependente, nunca é multa em dinheiro. Pode ser proibição de frequentar determinados locais, privação de benefícios sociais, pode ser proibido de viajar para o exterior, de dirigir. É uma lista longa, que inclui ainda trabalho comunitário. Prisão nunca.
ISTOÉ -
Não há internação? 
 
JOÃO GOULÃO -
Quem assumir o acompanhamento do dependente discutirá com ele qual a melhor via de tratamento, e a internação é uma delas. O nosso problema principal é a heroína e, neste caso, trata-se da terapia de substituição pela (medicação) metadona. Há várias outras modalidades terapêuticas.
 
ISTOÉ -
E quanto aos consumidores recreativos? 
JOÃO GOULÃO -
A equipe técnica tenta identificar quais os fatores que levam a pessoa a caminhar para a dependência. É avaliada a história familiar, social e o perfil psicológico do indivíduo. A intenção é interromper o mais precocemente possível esse trajeto. 
ISTOÉ -
E se eles voltarem a se drogar?
 
JOÃO GOULÃO -
Se reincidir no período de suspensão do processo, terá a obrigação de se apresentar periodicamente ao sistema, onde será avaliado. Se continuar, pode ser multado em até 500 euros e receber outras penas. 
ISTOÉ -
Vocês tratam somente os usuários flagrados pela polícia?
 
JOÃO GOULÃO -
Não. Essa é uma das vias de acesso ao nosso sistema de tratamento.Tratamos por ano sete mil pessoas encaminhadas pela Comissão de Dissuasão. E temos por volta de 50 mil pessoas em tratamento nos nossos centros. Muitos vão voluntariamente, enviados por médicos ou pela família. É um sistema forte. Nosso orçamento é de 75 milhões de euros por ano. Atualmente, estamos com algumas dificuldades em função da crise econômica, mas temos conseguido sucesso. Tanto que há três anos estendemos nosso programa aos dependentes de álcool. 
ISTOÉ -
E a reação dos policiais?
 
JOÃO GOULÃO -
A polícia não via sentido em prender viciados. Ela não tem mais que instruir processo nem fazer investigação sobre dependentes. A polícia passou a ter mais tempo para se dedicar às investigações sobre o grande tráfico. A eficácia aumentou enormemente na apreensão de carregamentos de drogas.
 
ISTOÉ -
Não se prende o usuário, mas como ele compra o que é proibido?
 
JOÃO GOULÃO -
Os traficantes passaram a fazer mais viagens. Em vez de andar com grandes quantidades, carregam o mínimo. Caso sejam interceptados, alegam que é para consumo próprio. Mas, se a polícia tiver evidência de que era para venda, mesmo com as quantidades toleradas, ele vai para o sistema prisional. Assim como pode ocorrer o contrário. O sistema é flexível. 
ISTOÉ -
Na Holanda existem cafés e bares que vendem maconha. Em Portugal existe isso?
 
JOÃO GOULÃO -
Não. A Holanda não descriminalizou o consumo. Foi uma tentativa de separar o comércio das drogas ditas leves das pesadas e para isso foi autorizada a venda das chamadas drogas leves. Mas a coisa não ocorreu como se esperava. Muita gente ia para a Holanda somente para se drogar, é o turismo da droga! Os holandeses já determinaram que pessoas de outros países não podem mais comprar maconha no coffee shop. Mais dia, menos dia, haverá proibição total. 
ISTOÉ -
Qual a sua avaliação sobre o modo como o Brasil trata seus dependentes? 
JOÃO GOULÃO -
Parece-me necessário um esforço extra para haver respostas de saúde dirigidas à população dependente, como acesso facilitado a tratamentos. As instituições de saúde generalistas não têm capacidade de atender esse público. É complicado uma mesma unidade atender uma grávida e um drogado. No Brasil seria bom criar uma ampla rede de centros, mas pelas dimensões do País é difícil. Cada Estado ou município deveria assumir essa responsabilidade.
 
ISTOÉ -
Menores das Cracolândias são internados à força. Como avalia isso? 
JOÃO GOULÃO -
O tratamento compulsório é complicado. Poderiam ser criadas instâncias em que fosse trabalhada a motivação para o tratamento. 

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