ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
PODER JUDICIÁRIO
JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DO DISTRITO JUDICIÁRIO DA ZONA NORTE
Av. Guadalupe 2145 Conj. Santa Catarina, 2º andar, Potengi - CEP 59.112-560, Fone: 3615-4663, Natal-RN
PODER JUDICIÁRIO
JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DO DISTRITO JUDICIÁRIO DA ZONA NORTE
Av. Guadalupe 2145 Conj. Santa Catarina, 2º andar, Potengi - CEP 59.112-560, Fone: 3615-4663, Natal-RN
Processo n.º (APAGADO - PRESERVAR O RÉU)
Ação: Inquérito Policial
Ré(u)(s): DANIEL (APAGADO) (APAGADO)
SENTENÇA
RELATÓRIO
RELATÓRIO
Trata-se de ação penal pública em que figura DANIEL (APAGADO) (APAGADO), parte já qualificada nos autos, como acusado pela prática dos seguintes fatos: no dia 24 de agosto de 2011, teria subtraído uma garrafa de um litro de uísque da marca "Old Eight" e de dois frascos de desodorante da marca "Nívea", avaliados na quantia de R$ 55,00 (fls. 22/24 do Auto de prisão em flagrante), do supermercado de nome Brasileirinho, localizado na Avenida Moema Tinoco da Cunha Lima, s/n, Pajuçara, nesta capital. Ao final, a acusação capitulou os fatos como violadores das seguintes regras penais: arts. 155, caput, c/c art. 14, II, do Código Penal.
Vêm-me os autos conclusos para decidir sobre o recebimento ou não da denúncia.
Vêm-me os autos conclusos para decidir sobre o recebimento ou não da denúncia.
FUNDAMENTAÇÃO
QUESTÃO PRÉVIA
QUESTÃO PRÉVIA
Daniel na Cova dos Leões - Da inconstitucionalidade da reincidência como afastadora da bagatela
O Ministério Público ofertou cota em que apregoa não caber a aplicação do princípio da bagatela no caso de Daniel, por ele ser reincidente. E diz que
"durante toda a tramitação da execução penal nº(APAGADO - PRESERVAR O RÉU) o denunciado ficou ausente de todos os atos processuais, revelando, a toda evidência, seu desprezo no tocante ao jus puniendi estatal. Considerando essas circunstâncias pessoais negativas, conclui-se que o princípio da insignificância não pode beneficiar o denunciado, sob pena de estar-se fomentando a impunidade e o encorajando a dar continuidade às suas práticas delitivas"
Não sou muito de juntar jurisprudência em minhas decisões. Há quem as elenque como única razão de decidir. Principalmente se vier com uma das grifes do Planalto Central. Respeito, mas divirjo de quem crê no argumento de autoridade. Como já dizia Carl Sagan (à parte a discussão sobre cientificidade ou não do direito),
"Argumentos oriundos de ‘autoridades’ têm pouca importância. ‘Autoridades’ cometeram erros no passado e o farão de novo no futuro. Em outras palavras, na Ciência não existem autoridades; existem, no máximo, especialistas."
Age-se assim porque se faz crer que existe uma hierarquia não só processual, mas material também. Mas o direito não é religião. Não existem dogmas e nem portadores da verdade. A verdade não é dada por ninguém e nem há fórmulas a priori. É (re)construída no caso concreto, inevitavelmente. Por via das dúvidas, já que a praxe tem sido juntar a verdade dos tribunais superiores (verdade que muda de acordo com as mudanças de opinião dos referidos tribunais), trago à baila a seguinte (e recentíssima, moda da última estação) decisão do STF: Habeas Corpus. 2. Tentativa de furto. Bem de pequeno valor (R$ 100,00). Mínimo grau de lesividade da conduta. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. 4. Reincidência. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. 5.Ordem concedida. (HC 108872, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 22-09-2011 PUBLIC 23-09-2011)
Cabe asseverar que no referido julgamento o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, foi especialmente feliz quando disse (fls. 6-7 dos autos digitais do HC 108872) que
"malgrado os persuasivos fundamentos invocados pelo Superior Tribunal de Justiça ao denegar a ordem, tenho para mim que, ao invocar a condição de reincidente do paciente como obstáculo à aplicação do princípio da insignificância, afastou-se da melhor jurisprudência sufragada por esta Corte.
É que, para a aplicação do princípio em comento, somente aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. É que, levando-se em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente ser reincidente. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico e antijurídico — ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável —, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há sequer que se falar em crime.
É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para a incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato."
O acusado é pobre, provavelmente dependente químico, pois não somente alegou que queria vender os bens para manutenção da dependência química como a execução penal acima foi por porte de droga para uso próprio. Tem o perfil perfeito para o "etiquetamento". Depois lavaria eu as mãos, imputando a ele um caráter fraco, distorcido quando, na verdade, as pesquisas mostram que a reincidência, antes de ser uma degeneração da pessoa do acusado, é uma prova gritante das disparidades do nosso sistema social, que nunca aplicou o mais importante princípio constitucional, o da isonomia.
Assim, no tocante à vedação da bagatela em razão da reincidência, entendo que tal interpretação não se coaduna com a Carta de 1988 por várias razões. Vou a primeira. Uma pessoa deve ser punida pelo que fez e não pelo fato de que responde a outro processo ou a uma execução penal. Isso é ferir o princípio do non bis in idem.
Outra. O discurso do sistema penal é o de que a prisão se justifica para ressocializar o condenado. Quando ele volta a delinquir se trata de uma falha da pessoa ou do sistema? A certeza de que tenho é que em nosso ordenamento jurídico a ressocialização é praticamente nula. Alguém tem a coragem de dizer qu estou errado? Caso tenha, favor fazer uma visita à penitenciária mais próxima.
O índice de reincidência é tão alto que não consegue esconder isso. O apoio ao egresso é uma piada de mal gosto, peço desculpas mas não posso deixar de manifestar minha indignação com expressões mais fortes. Mas punir o reincidente é novamente ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, pois a ele não foram dadas as condições mínimas de ressocialização. Pelo contrário. Passar pelo sistema penal é afundar num poço profundo, escuro, onde jogamos entulhos e não colocamos escadas para dele sair. Depois ficamos nós do alto bradando contra o pobre diabo porque ele não conseguiu de lá sair para nosso nível.
Aí é fácil transferir para ele a culpa de um sistema que embrutece e cria monstros, pois não acredito que um indivíduo volte são após alguns meses de tratamento desumano. Ninguém se humaniza sendo tratado como animal. Ou pior. Como coisa.
A exclusão social no Brasil é uma aberração, permeando toda a nossa história. E no dizer de MARCIO POCHMANN, a resistência ao enfrentamento da exclusão social não advém somente de governos historicamente inconseqüentes ou de políticas sociais erradas, mas das próprias classes superiores que se alheiam ao apartheid social (o grupo das famílias mais ricas brasileiras, que constitui 0,001% da população, possui um patrimônio que representa 40% do PIB brasileiro)[1], passando o discurso da desigualdade como um “fenômeno natural”, para uma compreensão mais cômoda que vincula o ambiente da pauperização à criminalidade, cabendo, nesse sentido, o incremento do aparato de segurança e o aumento da repressão sobre as classes pobres 'perigosas'. Assim, a exclusão social tem sido concebida fundamentalmente como uma conseqüência do fracasso na trajetória individual dos próprios excluídos, incapazes de elevar a escolaridade, de obter uma ocupação de destaque e de maior remuneração, de constituir uma família exemplar, de encontrar uma carreira individual de sucesso, entre outros apanágios da alienação da riqueza [2]. Gasta-se, no Brasil, mais com segurança pública e privada do que com políticas sociais [3]. Enquanto isso,
"No limiar do século XXI, o Brasil registra uma manifestação surda mas poderosa – ainda que não articulada em torno de fins políticos – dos seguimentos excluídos da cidadania, esgarçados numa sociabilidade marcada pela violência urbana e pelo 'ganho fácil' no tráfico de drogas, na prostituição e na corrupção; ou ainda, sujeitando-se ao trabalho infantil e ao trabalho quase forçado executado por milhões de jovens com inserção profundamente precária, abrindo assim novas formas espúrias de valorização do capital" [4].
Mais uma vez deixando de lado o formalismo idealizador e alienante de Kelsen, vê-se que o sistema penal termina por etiquetar (labeling)[5] o criminalizado, gerando a chamada delinqüência cíclica [6], isto é, a reincidência contumaz.
Cria-se um estigma (e isso fica claro nesses autos em relação a Daniel), principalmente em relação àqueles que entram no ciclo de criminalização e possuem vários processos. Inconscientemente, o senso comum dos juristas é de predisposição à condenação. Maiores são as chances de aplicação de pena àquele indivíduo que se expressa usando gírias que se identificam com o discurso dos “marginais”. Candidatos potenciais também são os dependentes de entorpecentes ou que possuem uma conformação física “marginalizada”, como a presença de tatuagens no corpo.
Com efeito, não obstante as disparidades gritantes das leis incriminadoras, o sistema penal não funciona de acordo com o que está previsto nas normas garantidoras dos direitos dos criminalizados. Possui mecanismos próprios que revelam um direito penal de autor, e não de fato.
Como já dito, o Judiciário e do Ministério Público imaginam ter mais poder que o aparato policial, só que a filtragem é feita na fase investigativa [7]. Após dezoito anos da Constituinte e mais de cinco da Reforma do Judiciário[8], muitos estados-membros ainda não possuem Defensorias Públicas funcionando. Quem conhece a realidade do processo penal brasileiro sabe dos prejuízos com essa omissão.
Como o sistema penal é seletivo, os mais pobres são a ele submetidos e, na maioria das vezes, não possuem condições de constituir um defensor. Na falta de defensores públicos, são nomeados “dativos”. E o que é dado, obviamente, se revela pior do que é pago. Resultado: defesas ineficientes, quando não, materialmente inexistentes.
O processo penal se transforma em um jogo de cartas marcadas, num simulacro de contraditório em ampla defesa. Bem lembradas as palavras de Honoré Balzac – escritor francês (1799 a 1850): “as leis são teias de aranha em que as moscas grandes passam e as pequenas ficam presas”.
E agora pergunto: há pena de morte no Brasil? E prisão perpétua? O discurso dogmático e positivista vai, obviamente, dizer que não. Mas existe, sim, embora que não institucionalizada. Não devemos ser idealistas no sentido de imaginar que só existe o que está no papel. Os dados acima falam por si sobre a pena de morte não institucionalizada. Já a prisão perpétua se dá pelo índice de reincidência que chega, em algumas situações, a 70%, como reconhecido pelo Ministro Peluso (vide http://bit.ly/tet15k). É a fossilização do indivíduo, que ingressa no sistema penal e de lá não consegue mais sair.
O Direito Penal conseguirá, isoladamente, resolver a questão da criminalidade? Não, não conseguirá. É preciso mudar a estrutura social do Estado, diminuir as disparidades. Enquanto isso não ocorrer, isso aqui não será uma Noruega. Considerando que cada sociedade tem o crime que (muitas vezes) ela mesma produz e merece, uma política séria e honesta de prevenção deve começar por um sincero esforço de autocrítica, revisando os valores que a sociedade oficialmente pratica e proclama [9].
Posto isso, com fulcro nos princípios da lesividade, da culpabilidade, do non bis in idem e da dignidade da pessoa humana, afasto a alegação da reincidência como fator que desnatura a insignificância. Que responda Daniel por cada crime que cometeu e não pelo "conjunto da obra" do qual a sociedade termina por ser co-autora impune. O sistema penal é um felino e feroz predador. E suas presas são sempre, invariavelmente, oriundas dos extratos mais desprotegidos e distantes do poder. Não. Não serei eu, dessa vez, a empurrar Daniel para a cova dos leões.
"durante toda a tramitação da execução penal nº(APAGADO - PRESERVAR O RÉU) o denunciado ficou ausente de todos os atos processuais, revelando, a toda evidência, seu desprezo no tocante ao jus puniendi estatal. Considerando essas circunstâncias pessoais negativas, conclui-se que o princípio da insignificância não pode beneficiar o denunciado, sob pena de estar-se fomentando a impunidade e o encorajando a dar continuidade às suas práticas delitivas"
Não sou muito de juntar jurisprudência em minhas decisões. Há quem as elenque como única razão de decidir. Principalmente se vier com uma das grifes do Planalto Central. Respeito, mas divirjo de quem crê no argumento de autoridade. Como já dizia Carl Sagan (à parte a discussão sobre cientificidade ou não do direito),
"Argumentos oriundos de ‘autoridades’ têm pouca importância. ‘Autoridades’ cometeram erros no passado e o farão de novo no futuro. Em outras palavras, na Ciência não existem autoridades; existem, no máximo, especialistas."
Age-se assim porque se faz crer que existe uma hierarquia não só processual, mas material também. Mas o direito não é religião. Não existem dogmas e nem portadores da verdade. A verdade não é dada por ninguém e nem há fórmulas a priori. É (re)construída no caso concreto, inevitavelmente. Por via das dúvidas, já que a praxe tem sido juntar a verdade dos tribunais superiores (verdade que muda de acordo com as mudanças de opinião dos referidos tribunais), trago à baila a seguinte (e recentíssima, moda da última estação) decisão do STF: Habeas Corpus. 2. Tentativa de furto. Bem de pequeno valor (R$ 100,00). Mínimo grau de lesividade da conduta. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. 4. Reincidência. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. 5.Ordem concedida. (HC 108872, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 22-09-2011 PUBLIC 23-09-2011)
Cabe asseverar que no referido julgamento o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, foi especialmente feliz quando disse (fls. 6-7 dos autos digitais do HC 108872) que
"malgrado os persuasivos fundamentos invocados pelo Superior Tribunal de Justiça ao denegar a ordem, tenho para mim que, ao invocar a condição de reincidente do paciente como obstáculo à aplicação do princípio da insignificância, afastou-se da melhor jurisprudência sufragada por esta Corte.
É que, para a aplicação do princípio em comento, somente aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. É que, levando-se em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente ser reincidente. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico e antijurídico — ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável —, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há sequer que se falar em crime.
É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para a incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato."
O acusado é pobre, provavelmente dependente químico, pois não somente alegou que queria vender os bens para manutenção da dependência química como a execução penal acima foi por porte de droga para uso próprio. Tem o perfil perfeito para o "etiquetamento". Depois lavaria eu as mãos, imputando a ele um caráter fraco, distorcido quando, na verdade, as pesquisas mostram que a reincidência, antes de ser uma degeneração da pessoa do acusado, é uma prova gritante das disparidades do nosso sistema social, que nunca aplicou o mais importante princípio constitucional, o da isonomia.
Assim, no tocante à vedação da bagatela em razão da reincidência, entendo que tal interpretação não se coaduna com a Carta de 1988 por várias razões. Vou a primeira. Uma pessoa deve ser punida pelo que fez e não pelo fato de que responde a outro processo ou a uma execução penal. Isso é ferir o princípio do non bis in idem.
Outra. O discurso do sistema penal é o de que a prisão se justifica para ressocializar o condenado. Quando ele volta a delinquir se trata de uma falha da pessoa ou do sistema? A certeza de que tenho é que em nosso ordenamento jurídico a ressocialização é praticamente nula. Alguém tem a coragem de dizer qu estou errado? Caso tenha, favor fazer uma visita à penitenciária mais próxima.
O índice de reincidência é tão alto que não consegue esconder isso. O apoio ao egresso é uma piada de mal gosto, peço desculpas mas não posso deixar de manifestar minha indignação com expressões mais fortes. Mas punir o reincidente é novamente ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, pois a ele não foram dadas as condições mínimas de ressocialização. Pelo contrário. Passar pelo sistema penal é afundar num poço profundo, escuro, onde jogamos entulhos e não colocamos escadas para dele sair. Depois ficamos nós do alto bradando contra o pobre diabo porque ele não conseguiu de lá sair para nosso nível.
Aí é fácil transferir para ele a culpa de um sistema que embrutece e cria monstros, pois não acredito que um indivíduo volte são após alguns meses de tratamento desumano. Ninguém se humaniza sendo tratado como animal. Ou pior. Como coisa.
A exclusão social no Brasil é uma aberração, permeando toda a nossa história. E no dizer de MARCIO POCHMANN, a resistência ao enfrentamento da exclusão social não advém somente de governos historicamente inconseqüentes ou de políticas sociais erradas, mas das próprias classes superiores que se alheiam ao apartheid social (o grupo das famílias mais ricas brasileiras, que constitui 0,001% da população, possui um patrimônio que representa 40% do PIB brasileiro)[1], passando o discurso da desigualdade como um “fenômeno natural”, para uma compreensão mais cômoda que vincula o ambiente da pauperização à criminalidade, cabendo, nesse sentido, o incremento do aparato de segurança e o aumento da repressão sobre as classes pobres 'perigosas'. Assim, a exclusão social tem sido concebida fundamentalmente como uma conseqüência do fracasso na trajetória individual dos próprios excluídos, incapazes de elevar a escolaridade, de obter uma ocupação de destaque e de maior remuneração, de constituir uma família exemplar, de encontrar uma carreira individual de sucesso, entre outros apanágios da alienação da riqueza [2]. Gasta-se, no Brasil, mais com segurança pública e privada do que com políticas sociais [3]. Enquanto isso,
"No limiar do século XXI, o Brasil registra uma manifestação surda mas poderosa – ainda que não articulada em torno de fins políticos – dos seguimentos excluídos da cidadania, esgarçados numa sociabilidade marcada pela violência urbana e pelo 'ganho fácil' no tráfico de drogas, na prostituição e na corrupção; ou ainda, sujeitando-se ao trabalho infantil e ao trabalho quase forçado executado por milhões de jovens com inserção profundamente precária, abrindo assim novas formas espúrias de valorização do capital" [4].
Mais uma vez deixando de lado o formalismo idealizador e alienante de Kelsen, vê-se que o sistema penal termina por etiquetar (labeling)[5] o criminalizado, gerando a chamada delinqüência cíclica [6], isto é, a reincidência contumaz.
Cria-se um estigma (e isso fica claro nesses autos em relação a Daniel), principalmente em relação àqueles que entram no ciclo de criminalização e possuem vários processos. Inconscientemente, o senso comum dos juristas é de predisposição à condenação. Maiores são as chances de aplicação de pena àquele indivíduo que se expressa usando gírias que se identificam com o discurso dos “marginais”. Candidatos potenciais também são os dependentes de entorpecentes ou que possuem uma conformação física “marginalizada”, como a presença de tatuagens no corpo.
Com efeito, não obstante as disparidades gritantes das leis incriminadoras, o sistema penal não funciona de acordo com o que está previsto nas normas garantidoras dos direitos dos criminalizados. Possui mecanismos próprios que revelam um direito penal de autor, e não de fato.
Como já dito, o Judiciário e do Ministério Público imaginam ter mais poder que o aparato policial, só que a filtragem é feita na fase investigativa [7]. Após dezoito anos da Constituinte e mais de cinco da Reforma do Judiciário[8], muitos estados-membros ainda não possuem Defensorias Públicas funcionando. Quem conhece a realidade do processo penal brasileiro sabe dos prejuízos com essa omissão.
Como o sistema penal é seletivo, os mais pobres são a ele submetidos e, na maioria das vezes, não possuem condições de constituir um defensor. Na falta de defensores públicos, são nomeados “dativos”. E o que é dado, obviamente, se revela pior do que é pago. Resultado: defesas ineficientes, quando não, materialmente inexistentes.
O processo penal se transforma em um jogo de cartas marcadas, num simulacro de contraditório em ampla defesa. Bem lembradas as palavras de Honoré Balzac – escritor francês (1799 a 1850): “as leis são teias de aranha em que as moscas grandes passam e as pequenas ficam presas”.
E agora pergunto: há pena de morte no Brasil? E prisão perpétua? O discurso dogmático e positivista vai, obviamente, dizer que não. Mas existe, sim, embora que não institucionalizada. Não devemos ser idealistas no sentido de imaginar que só existe o que está no papel. Os dados acima falam por si sobre a pena de morte não institucionalizada. Já a prisão perpétua se dá pelo índice de reincidência que chega, em algumas situações, a 70%, como reconhecido pelo Ministro Peluso (vide http://bit.ly/tet15k). É a fossilização do indivíduo, que ingressa no sistema penal e de lá não consegue mais sair.
O Direito Penal conseguirá, isoladamente, resolver a questão da criminalidade? Não, não conseguirá. É preciso mudar a estrutura social do Estado, diminuir as disparidades. Enquanto isso não ocorrer, isso aqui não será uma Noruega. Considerando que cada sociedade tem o crime que (muitas vezes) ela mesma produz e merece, uma política séria e honesta de prevenção deve começar por um sincero esforço de autocrítica, revisando os valores que a sociedade oficialmente pratica e proclama [9].
Posto isso, com fulcro nos princípios da lesividade, da culpabilidade, do non bis in idem e da dignidade da pessoa humana, afasto a alegação da reincidência como fator que desnatura a insignificância. Que responda Daniel por cada crime que cometeu e não pelo "conjunto da obra" do qual a sociedade termina por ser co-autora impune. O sistema penal é um felino e feroz predador. E suas presas são sempre, invariavelmente, oriundas dos extratos mais desprotegidos e distantes do poder. Não. Não serei eu, dessa vez, a empurrar Daniel para a cova dos leões.
DO MÉRITO
Obedecendo ao comando esculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, e dando início à formação motivada do meu convencimento acerca dos fatos narrados na inicial e imputados ao réu.
Sem dúvida, dentre os ramos do Direito Público, é no processo penal onde mais se evidencia a influência da concepção político-ideológica reinante em determinado momento. Mais que simples método de composição de conflitos, o processo penal representa verdadeiro termômetro de aferição do aparelho ideológico do Estado no qual concebido.
Partindo dessa premissa é que se observa que o modelo processual adotado recebe direta e imediatamente a influência do modelo de Estado onde concebido. Essa a razão pela qual pode-se afirmar que no modelo de Estado Democrático só há lugar e ambiente adequado para recepção do sistema processual acusatório e garantista.
O juiz não é, assim, combatente da criminalidade, muito menos o Ministério Público, cujo papel em muito excede o de mero acusador.
Sem dúvida, dentre os ramos do Direito Público, é no processo penal onde mais se evidencia a influência da concepção político-ideológica reinante em determinado momento. Mais que simples método de composição de conflitos, o processo penal representa verdadeiro termômetro de aferição do aparelho ideológico do Estado no qual concebido.
Partindo dessa premissa é que se observa que o modelo processual adotado recebe direta e imediatamente a influência do modelo de Estado onde concebido. Essa a razão pela qual pode-se afirmar que no modelo de Estado Democrático só há lugar e ambiente adequado para recepção do sistema processual acusatório e garantista.
O juiz não é, assim, combatente da criminalidade, muito menos o Ministério Público, cujo papel em muito excede o de mero acusador.
DA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA EXCEPCIONAL
Deparei-me recentemente e algumas poucas vezes, é verdade, mas tive que me pronunciar em casos em que houve oferecimento de denúncia de um fato que considerei, de plano, atípico.
Na redação originária do CPP a resposta era simples. Dizia o artigo 43, hoje revogado expressamente, que:"Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - o fato narrado evidentemente não constituir crime;”
Importantes alterações trouxe a lei 11.719/2008 ao processo penal brasileiro. Entre elas a do dispositivo concernente à rejeição da denúncia. Diz o seguinte:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - for manifestamente inepta;
II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou
III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.
O rito atual diz o seguinte: não ocorrendo nenhuma das questões processuais, vem à tona as de mérito, da mesma maneira que ocorre no processo civil (vide Nelton Agnaldo Moraes dos Santos - A técnica de elaboração da sentença civil). Por isso diz o art. 396 do CPP que não a rejeitando, sendo, então, questão de mérito, receberá a denúncia e determinará a citação do acusado para responder à acusação em 10 dias.
Eis que surge, então, o art. 397 do CPP, que determina que
Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:
I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV - extinta a punibilidade do agente.
Já vi decisões em que em casos análogos se termina reconhecendo a falta de justa causa para, diante de uma situação atípica, rejeitar a denúncia. Entendo que esse não é o correto fazer diante do princípio do devido processo legal, até porque quando se rejeita uma denúncia se possibilita que haja nova propositura.
Portanto, seria incabível rejeitar uma denúncia com base na atipicidade material de um fato, pois isso é questão de mérito, que exige um juízo de valor sobre os fatos e sua repercussão no mundo.
Assim, surgem situações em que a tipicidade formal está presente, mas a material, não. E ninguém há de discordar que pelo simples fato de estar a se responder a uma ação penal o indivíduo já tem o seu status dignitatis alterado. Passa a ser visto de maneira diferente pela comunidade. Numa entrevista de emprego um dos documentos requeridos é exatamente a folha de antecedentes. Embora não exista determinação legal que implique na não contratação, até porque feriria o princípio da presunção de inocência, inegável também é que não podemos nos descurar da realidade e fechar os olhos para o fato de que uma certidão positiva fecha as portas. Como também fecha as portas para uma série de relações sociais do pretenso acusado em juízo. A psicologia social tem vastos estudos dando conta da mudança de visão que se tem de alguém pelo fato de ser considerado um acusado. Isso, inegavelmente, termina por ter um caráter aflitivo para o acusado e, não raras vezes, seus familiares também. Por isso, toda cautela é pouco.
E diz a Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Jogando fora o formalismo niilista que não quer ver que há uma grande diferença entre por fim a uma denúncia ab-ovo antes ou depois do recebimento da denúncia, e fazendo uma hermenêutica constitucional dos dispositivos dos arts. 395 e 397 do CP, entendo que não obstante não seja caso de rejeição da denúncia, pois os critérios formais estão cumpridos, eis que é situação anômala de absolvição sumária, pois diz respeito a uma questão de fundo, patente e consolidada, que não só é de indevida acusação, como que também fere a dignidade do cidadão esperar para somente após a resposta à acusação decidir o que já se antevê agora.
Cabe, por fim, salientar que não urge ser caso de rejeição por falta de justa causa, pois essa tem a ver com a ausência de provas cabais dos fatos, da falta de um lastro probatório mínimo a embasar a acusação. Aqui o que há de faltar é exatamente a relação entre o fato e sua repercussão na espera penal, a falta de base material que justifique a conduta ser penalmente relevante, e não a comprovação de sua existência.
Na redação originária do CPP a resposta era simples. Dizia o artigo 43, hoje revogado expressamente, que:"Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - o fato narrado evidentemente não constituir crime;”
Importantes alterações trouxe a lei 11.719/2008 ao processo penal brasileiro. Entre elas a do dispositivo concernente à rejeição da denúncia. Diz o seguinte:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - for manifestamente inepta;
II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou
III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.
O rito atual diz o seguinte: não ocorrendo nenhuma das questões processuais, vem à tona as de mérito, da mesma maneira que ocorre no processo civil (vide Nelton Agnaldo Moraes dos Santos - A técnica de elaboração da sentença civil). Por isso diz o art. 396 do CPP que não a rejeitando, sendo, então, questão de mérito, receberá a denúncia e determinará a citação do acusado para responder à acusação em 10 dias.
Eis que surge, então, o art. 397 do CPP, que determina que
Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:
I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV - extinta a punibilidade do agente.
Já vi decisões em que em casos análogos se termina reconhecendo a falta de justa causa para, diante de uma situação atípica, rejeitar a denúncia. Entendo que esse não é o correto fazer diante do princípio do devido processo legal, até porque quando se rejeita uma denúncia se possibilita que haja nova propositura.
Portanto, seria incabível rejeitar uma denúncia com base na atipicidade material de um fato, pois isso é questão de mérito, que exige um juízo de valor sobre os fatos e sua repercussão no mundo.
Assim, surgem situações em que a tipicidade formal está presente, mas a material, não. E ninguém há de discordar que pelo simples fato de estar a se responder a uma ação penal o indivíduo já tem o seu status dignitatis alterado. Passa a ser visto de maneira diferente pela comunidade. Numa entrevista de emprego um dos documentos requeridos é exatamente a folha de antecedentes. Embora não exista determinação legal que implique na não contratação, até porque feriria o princípio da presunção de inocência, inegável também é que não podemos nos descurar da realidade e fechar os olhos para o fato de que uma certidão positiva fecha as portas. Como também fecha as portas para uma série de relações sociais do pretenso acusado em juízo. A psicologia social tem vastos estudos dando conta da mudança de visão que se tem de alguém pelo fato de ser considerado um acusado. Isso, inegavelmente, termina por ter um caráter aflitivo para o acusado e, não raras vezes, seus familiares também. Por isso, toda cautela é pouco.
E diz a Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Jogando fora o formalismo niilista que não quer ver que há uma grande diferença entre por fim a uma denúncia ab-ovo antes ou depois do recebimento da denúncia, e fazendo uma hermenêutica constitucional dos dispositivos dos arts. 395 e 397 do CP, entendo que não obstante não seja caso de rejeição da denúncia, pois os critérios formais estão cumpridos, eis que é situação anômala de absolvição sumária, pois diz respeito a uma questão de fundo, patente e consolidada, que não só é de indevida acusação, como que também fere a dignidade do cidadão esperar para somente após a resposta à acusação decidir o que já se antevê agora.
Cabe, por fim, salientar que não urge ser caso de rejeição por falta de justa causa, pois essa tem a ver com a ausência de provas cabais dos fatos, da falta de um lastro probatório mínimo a embasar a acusação. Aqui o que há de faltar é exatamente a relação entre o fato e sua repercussão na espera penal, a falta de base material que justifique a conduta ser penalmente relevante, e não a comprovação de sua existência.
DO CASO CONCRETO
Decidido pela possibilidade de absolvição sumária excepcionalmente antes do recebimento da denúncia, acresço que o juízo de absolvição sumária deve ser usado com cautela, uma vez que o processo, com sua instrução preestabelecida exatamente para melhor aprofundamento da dialética do contraditório, torna-se garantia tanto para o acusado, para saber que está tendo a oportunidade de se defender com a amplitude que a Constituição lhe garante, bem como para o acusador, que poderá exercer seu papel de perseguir a pretensão punitiva outorgada pelo Estado. Contudo, não devo tratar o assunto de maneira alienada. É importante, acima de tudo, saber o que há por trás do sistema penal para tão somente após isso avaliar, diante do que dispõe o art. 5º XXXV, da Carta Constitucional de nossa República:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Em casos como o que ora analiso, bem rememoro as palavras de San Thiago Dantas: “Quem só direito sabe, nem o direito sabe”.
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Em casos como o que ora analiso, bem rememoro as palavras de San Thiago Dantas: “Quem só direito sabe, nem o direito sabe”.
DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Ao caso em apreço aplico o princípio da insignificância. Começo destacando a atual jurisprudência do STF sobre o assunto, passando pelo destaque feito pelo Ministro Gilmar Mendes e pela caracterização, na situação concreta, dos requisitos para a aplicação do referido postulado.
Portanto, o quadro atual da jurisprudência do STF sobre a aplicação do referido princípio, nos casos de crimes contra o patrimônio, é o seguinte:
Tentativa de furto de dez brocas, dois cadeados, duas cuecas, três sungas e seis bermudas (HC 106351, Rel. Min Gilmar Mendes – DJe-030, de 14-02-2011)
Estelionato com vantagem econômica de R$ 125,97 (HC 100937, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJe-020, Public. em 01-02-2011)
Furto de cinco galinhas e dois sacos de ração (RHC 105919, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe-020, de 01-02-2011)
Aparelho celular avaliado em R$ 200,00, devolvido à vítima (HC 105974, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe-020, de 01-02-2011)
Subtração de Walkman no valor de R$ 94,00 (STF – HC 91.920 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJe 12.03.2010 – p. 77)
Estelionato no valor de R$ 267,00 (STF – HC 93.453 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJe 02.10.2009 – p. 133)
Subtração de "aparelho de som de veículo. Tentativa. Coisa estimada em cento e trinta reais" (STF – HC 92988 – 2ª T. – Rel. Min. Cezar Peluso – DJ 26.06.2009)
Tentativa de furto de "uma pia de mármore em valor estimado de R$ 35,00" (STJ – HC 120.429 – (2008.0249771-9) – 5ª T. – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – DJe 29.06.2009)
Subtração de "uma bicicleta usada avaliada em pouco mais de cem reais" (STJ – HC 79.947 – (2007/0068055-8) – 6ª T – Rel. Min. Nilson Naves – DJe 23.11.2009 – p. 2442)
"É insignificante, dúvida não há, a tentativa de furto de um aparelho telefônico celular no valor de 130 reais" (STJ – HC 120.972 – (2008/0253599-1) – 6ª T – Rel. Min. Nilson Naves – DJe 23.11.2009 – p. 2457)
Furto de cinco peças de roupas usadas (STF – HC 92.411-5 – Rel. Min. Carlos Britto – DJe 09.05.2008 – p. 111)
Furto de "um violão cujo valor restou estimado em R$ 90.00" (STF – HC 94.770-1 – Rel. Joaquim Barbosa – DJe 12.12.2008 – p. 117)
Conforme destacou o Ministro Gilmar no HC 106351,[10] após um longo processo de formação, marcado por decisões casuais e excepcionais, o referido princípio acabou por solidificar-se como importante instrumento de aprimoramento do Direito Penal, sendo paulatinamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, em especial a deste Supremo Tribunal Federal.
Acrescente-se, ainda, o decidido pelo Supremo Tribunal Federal no HC 96822, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, cujo conteúdo se assemelha ao caso em análise:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. TENTATIVA DE FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: INCIDÊNCIA. ANÁLISE RESERVADA AOS ASPECTOS OBJETIVOS DO FATO. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. A tentativa de furto praticada pela Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. A conduta tem contornos que demonstram pouca importância de relevância na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado. 2. A jurisprudência deste Supremo Tribunal admite, em casos específicos, a incidência do princípio da insignificância, em face de aspectos objetivos do fato. Tais aspectos apresentam-se no caso, a autorizar a concessão da ordem pleiteada. 3. Ordem concedida.
(HC 96822, CÁRMEN LÚCIA, STF.)
Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.
E o que diz o princípio da ofensividade, segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria?
Responde Ferrajolli:
“La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[11]
Assim, em se verificando que a conduta do acusado não lesa (ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum ou um dano insignificante, não há fato a ser punido. Não há tipicidade, pois a conduta que se incrimina tem que ser inequivocamente lesiva para aqueles valores e interesses expressivos de genuínos bens jurídicos.
A periculosidade social da ação diz respeito à capacidade da conduta de lesionar bens que digam respeito às relações de convivência social. Essa variável tem direta relação com o princípio da fragmentariedade, que visa excluir da punição penal as condutas que não sejam graves, isto é, dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade e à consecução do Estado de Direito.
Entendo ser a reprovabilidade do comportamento um elemento avaliado no caso concreto, tendo em vista a conduta e seus resultados para o ofendido e para a sociedade. Assim, somente condutas que demonstrem inequívoca repulsa social devem merecer apenação. Exemplificando, eu mesmo aqui já me deparei com um caso em que afastei a alegação de insignificância em razão da conduta do agente que cometeu estelionatos de valores inferiores a cem reais, em razão de ludibriar pessoas desempregadas, com a esperança de obter um emprego. Todas as vítimas, já fragilizadas pelo desemprego, pediram empréstimos a parentes e amigos para entregar ao acusado que, supostamente, iria compara fardamentos com tal numerário.
Em relação ao princípio da lesividade, dirige-se, em um primeiro momento, ao legislador, e posteriormente ao julgador, quando determina que ele deve observar o seguinte, na feitura das leis penais incriminadoras:
I. Não incriminar e nem punir senão atitudes externas, pois algo que só existe no plano psicológico não pode ser objeto de punição;
II. Não incriminar e nem punir condutas que não excedam o âmbito do próprio autor. Por exemplo, uma autolesão;
III. Não incriminar e nem punir simples estados ou condições existenciais. Não se pode punir alguém por ser hippie, não tomar banho, ser desempregado (trabalho é um direito constitucional, não um dever);
IV. Não incriminar e nem punir uma pessoa tendo por base fundamentos morais. Um exemplo clássico de violação desse princípio é consideração, na aplicação da pena, da circunstância judicial “conduta social”, do art. 59 do CP, para apenar mais gravemente um acusado que vivia embriagado ou sendo mal-educado com a vizinhança.
A aplicação do princípio da insignificância, por excluir a própria tipicidade material da conduta atribuída ao agente, importa, necessariamente, na absolvição penal do réu (CPP, art. 386, III), eis que o fato insignificante, por ser atípico, não se reveste de relevo jurídico-penal.
Tal princípio já era conhecido e reconhecido pela doutrina, conforme os ensinamentos de Bitencourt e Greco, abaixo transcritos:
“A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio da bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 15ª ed., pg. 51. São Paulo: Saraiva, 2010).
“Para concluirmos pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolho dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância. Nessa seleção de bens, o legislador abrigou, a fim de serem tutelados pelo Direito penal, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade sexual, etc. [...] Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a importância do bem no caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 11ª ed., pg. 161-162. Rio de Janeiro: Impetus, 2009).
Para que seja razoável concluir, em caso concreto, no sentido da tipicidade, mister se faz a conjugação da tipicidade formal com a tipicidade material, sob pena de abandonar-se, assim, o desiderato do próprio ordenamento jurídico criminal. Ao evidenciar a presença da tipicidade formal, mas a ausência da tipicidade material, o aplicador do direito encontrar-se-á diante de um caso manifestamente atípico.
Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta, quando devolvida a res furtiva em sua integralidade, e quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.
Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao Direito Penal — como instrumento de controle mais rígido e duro que é — ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.
Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando os outros ramos do direito se demonstrarem ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente as condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade).
Dessarte, insta asseverar, ainda, que, para chegar-se à tipicidade material, há que se pôr em prática juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como consequência da intervenção penal do Estado. A análise da questão, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pode justificar, dessa forma, a ilegitimidade da intervenção estatal por meio do Direito Penal.
Diante do exposto, destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante e que a conduta não causou lesividade relevante à ordem social, havendo que incidir, por conseguinte, o postulado da bagatela.
Ressalto, ademais, como se deflui dos autos, que os bens foram integralmente devolvidos.
Avaliando os elementos que caracterizam a insignificância, tenho o seguinte:
(a) a mínima ofensividade da conduta do agente: a ação não causou dano à vítima, uma vez que os bens tinham um valor irrisório e foram todos restituídos.
(b) a nenhuma periculosidade social da ação: a ação não causou lesão significante à sociedade.
(c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento: o fato, em si, não ocasionou repercussão social nenhuma em termos de exigir sua punição.
(d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada: subtração tentada que não lesiona bem jurídico nenhum.
Nesses termos, tenho que — a despeito de ficar patente a existência da tipicidade formal (perfeita adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal) — não incide, no caso, a tipicidade material, que se traduz na lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada ao paciente.
Portanto, num Estado desigual como o nosso chega soar até ingênua a crença em um legislador ordinário racional e que incrimina os tipo de maneira razoável e proporcional, tudo tendo em vista uma coerência interna do sistema penal. A tipicidade primária, feita pelo legislador, chamada também de tipicidade formal já é deveras falha, por conseguinte. E no caso concreto a tipicidade material também não se constituiu validamente, uma vez que não ofendeu o bem jurídico tutelado. Não é o caminho individualmente mais justo e socialmente mais adequado acreditar que constitui materialmente uma infração penal o seguinte fato de o acusado ter tentado subtrair bens no valor de R$ 55,00, ainda mais numa situação em que havia total controle dos fatos pela vítima, o que enseja a figura do crime impossível. Punir isso é criminalizar indevidamente alguém, lançando no sistema penal quem não deveria merecer a reprimenda.
Não venham falar que entender atípica tal conduta estimularia a prática de infrações, pois também é ingênuo acreditar que todos os crimes análogos ao processo ora julgado estão sendo descobertos, perseguidos e punidos. A cifra negra da criminalidade é tamanha que em nosso país, para se ter uma idéia, somente 6% do homicídios terminam com um culpado identificado, julgado e condenado. Imagine dizer de uma infração dessa natureza.
Se o aparelho do Estado não aprender a melhor utilizar seus recursos em situações realmente necessárias, continuaremos mantendo esse sistema de extrema desigualdade, marcado pela opressão da maioria usurpada dos meios legítimos de assistência do Estado, e abençoando e estimulando a criminalidade em larga escala, criminalidade que tantos prejuízos causa ao Estado e ao povo brasileiro.
Assim,
A) pela desproporção entre o fato e sua repercussão social e individual;
B) pela falta de desvalor da conduta e do resultado;
C) por não ferir, haja vista sua insignificância, o bem jurídico tutelado pela norma penal e as garantias de inviolabilidade contidas nos Direitos Fundamentais e que constituem a fundamentação do direito de punir do Estado (a inviolabilidade dos direitos à vida, intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, ao patrimônio, à liberdade de escolha e de locomoção; e à dignidade, dentre outros);
D) pela necessidade de respeitar a dignidade da pessoa humana do acusado, haja vista que a desproporção entre o fato e a situação jurídico-penal a que está submetido;
D) pelo tempo que já passou preso o acusado, 3 dias;
Entendo que a absolvição é a solução constitucionalmente mais acertada para o caso.
Portanto, o quadro atual da jurisprudência do STF sobre a aplicação do referido princípio, nos casos de crimes contra o patrimônio, é o seguinte:
Tentativa de furto de dez brocas, dois cadeados, duas cuecas, três sungas e seis bermudas (HC 106351, Rel. Min Gilmar Mendes – DJe-030, de 14-02-2011)
Estelionato com vantagem econômica de R$ 125,97 (HC 100937, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJe-020, Public. em 01-02-2011)
Furto de cinco galinhas e dois sacos de ração (RHC 105919, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe-020, de 01-02-2011)
Aparelho celular avaliado em R$ 200,00, devolvido à vítima (HC 105974, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe-020, de 01-02-2011)
Subtração de Walkman no valor de R$ 94,00 (STF – HC 91.920 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJe 12.03.2010 – p. 77)
Estelionato no valor de R$ 267,00 (STF – HC 93.453 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJe 02.10.2009 – p. 133)
Subtração de "aparelho de som de veículo. Tentativa. Coisa estimada em cento e trinta reais" (STF – HC 92988 – 2ª T. – Rel. Min. Cezar Peluso – DJ 26.06.2009)
Tentativa de furto de "uma pia de mármore em valor estimado de R$ 35,00" (STJ – HC 120.429 – (2008.0249771-9) – 5ª T. – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – DJe 29.06.2009)
Subtração de "uma bicicleta usada avaliada em pouco mais de cem reais" (STJ – HC 79.947 – (2007/0068055-8) – 6ª T – Rel. Min. Nilson Naves – DJe 23.11.2009 – p. 2442)
"É insignificante, dúvida não há, a tentativa de furto de um aparelho telefônico celular no valor de 130 reais" (STJ – HC 120.972 – (2008/0253599-1) – 6ª T – Rel. Min. Nilson Naves – DJe 23.11.2009 – p. 2457)
Furto de cinco peças de roupas usadas (STF – HC 92.411-5 – Rel. Min. Carlos Britto – DJe 09.05.2008 – p. 111)
Furto de "um violão cujo valor restou estimado em R$ 90.00" (STF – HC 94.770-1 – Rel. Joaquim Barbosa – DJe 12.12.2008 – p. 117)
Conforme destacou o Ministro Gilmar no HC 106351,[10] após um longo processo de formação, marcado por decisões casuais e excepcionais, o referido princípio acabou por solidificar-se como importante instrumento de aprimoramento do Direito Penal, sendo paulatinamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, em especial a deste Supremo Tribunal Federal.
Acrescente-se, ainda, o decidido pelo Supremo Tribunal Federal no HC 96822, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, cujo conteúdo se assemelha ao caso em análise:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. TENTATIVA DE FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: INCIDÊNCIA. ANÁLISE RESERVADA AOS ASPECTOS OBJETIVOS DO FATO. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. A tentativa de furto praticada pela Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. A conduta tem contornos que demonstram pouca importância de relevância na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado. 2. A jurisprudência deste Supremo Tribunal admite, em casos específicos, a incidência do princípio da insignificância, em face de aspectos objetivos do fato. Tais aspectos apresentam-se no caso, a autorizar a concessão da ordem pleiteada. 3. Ordem concedida.
(HC 96822, CÁRMEN LÚCIA, STF.)
Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.
E o que diz o princípio da ofensividade, segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria?
Responde Ferrajolli:
“La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[11]
Assim, em se verificando que a conduta do acusado não lesa (ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum ou um dano insignificante, não há fato a ser punido. Não há tipicidade, pois a conduta que se incrimina tem que ser inequivocamente lesiva para aqueles valores e interesses expressivos de genuínos bens jurídicos.
A periculosidade social da ação diz respeito à capacidade da conduta de lesionar bens que digam respeito às relações de convivência social. Essa variável tem direta relação com o princípio da fragmentariedade, que visa excluir da punição penal as condutas que não sejam graves, isto é, dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade e à consecução do Estado de Direito.
Entendo ser a reprovabilidade do comportamento um elemento avaliado no caso concreto, tendo em vista a conduta e seus resultados para o ofendido e para a sociedade. Assim, somente condutas que demonstrem inequívoca repulsa social devem merecer apenação. Exemplificando, eu mesmo aqui já me deparei com um caso em que afastei a alegação de insignificância em razão da conduta do agente que cometeu estelionatos de valores inferiores a cem reais, em razão de ludibriar pessoas desempregadas, com a esperança de obter um emprego. Todas as vítimas, já fragilizadas pelo desemprego, pediram empréstimos a parentes e amigos para entregar ao acusado que, supostamente, iria compara fardamentos com tal numerário.
Em relação ao princípio da lesividade, dirige-se, em um primeiro momento, ao legislador, e posteriormente ao julgador, quando determina que ele deve observar o seguinte, na feitura das leis penais incriminadoras:
I. Não incriminar e nem punir senão atitudes externas, pois algo que só existe no plano psicológico não pode ser objeto de punição;
II. Não incriminar e nem punir condutas que não excedam o âmbito do próprio autor. Por exemplo, uma autolesão;
III. Não incriminar e nem punir simples estados ou condições existenciais. Não se pode punir alguém por ser hippie, não tomar banho, ser desempregado (trabalho é um direito constitucional, não um dever);
IV. Não incriminar e nem punir uma pessoa tendo por base fundamentos morais. Um exemplo clássico de violação desse princípio é consideração, na aplicação da pena, da circunstância judicial “conduta social”, do art. 59 do CP, para apenar mais gravemente um acusado que vivia embriagado ou sendo mal-educado com a vizinhança.
A aplicação do princípio da insignificância, por excluir a própria tipicidade material da conduta atribuída ao agente, importa, necessariamente, na absolvição penal do réu (CPP, art. 386, III), eis que o fato insignificante, por ser atípico, não se reveste de relevo jurídico-penal.
Tal princípio já era conhecido e reconhecido pela doutrina, conforme os ensinamentos de Bitencourt e Greco, abaixo transcritos:
“A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio da bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 15ª ed., pg. 51. São Paulo: Saraiva, 2010).
“Para concluirmos pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolho dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância. Nessa seleção de bens, o legislador abrigou, a fim de serem tutelados pelo Direito penal, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade sexual, etc. [...] Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a importância do bem no caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 11ª ed., pg. 161-162. Rio de Janeiro: Impetus, 2009).
Para que seja razoável concluir, em caso concreto, no sentido da tipicidade, mister se faz a conjugação da tipicidade formal com a tipicidade material, sob pena de abandonar-se, assim, o desiderato do próprio ordenamento jurídico criminal. Ao evidenciar a presença da tipicidade formal, mas a ausência da tipicidade material, o aplicador do direito encontrar-se-á diante de um caso manifestamente atípico.
Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta, quando devolvida a res furtiva em sua integralidade, e quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.
Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao Direito Penal — como instrumento de controle mais rígido e duro que é — ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.
Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando os outros ramos do direito se demonstrarem ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente as condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade).
Dessarte, insta asseverar, ainda, que, para chegar-se à tipicidade material, há que se pôr em prática juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como consequência da intervenção penal do Estado. A análise da questão, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pode justificar, dessa forma, a ilegitimidade da intervenção estatal por meio do Direito Penal.
Diante do exposto, destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante e que a conduta não causou lesividade relevante à ordem social, havendo que incidir, por conseguinte, o postulado da bagatela.
Ressalto, ademais, como se deflui dos autos, que os bens foram integralmente devolvidos.
Avaliando os elementos que caracterizam a insignificância, tenho o seguinte:
(a) a mínima ofensividade da conduta do agente: a ação não causou dano à vítima, uma vez que os bens tinham um valor irrisório e foram todos restituídos.
(b) a nenhuma periculosidade social da ação: a ação não causou lesão significante à sociedade.
(c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento: o fato, em si, não ocasionou repercussão social nenhuma em termos de exigir sua punição.
(d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada: subtração tentada que não lesiona bem jurídico nenhum.
Nesses termos, tenho que — a despeito de ficar patente a existência da tipicidade formal (perfeita adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal) — não incide, no caso, a tipicidade material, que se traduz na lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada ao paciente.
Portanto, num Estado desigual como o nosso chega soar até ingênua a crença em um legislador ordinário racional e que incrimina os tipo de maneira razoável e proporcional, tudo tendo em vista uma coerência interna do sistema penal. A tipicidade primária, feita pelo legislador, chamada também de tipicidade formal já é deveras falha, por conseguinte. E no caso concreto a tipicidade material também não se constituiu validamente, uma vez que não ofendeu o bem jurídico tutelado. Não é o caminho individualmente mais justo e socialmente mais adequado acreditar que constitui materialmente uma infração penal o seguinte fato de o acusado ter tentado subtrair bens no valor de R$ 55,00, ainda mais numa situação em que havia total controle dos fatos pela vítima, o que enseja a figura do crime impossível. Punir isso é criminalizar indevidamente alguém, lançando no sistema penal quem não deveria merecer a reprimenda.
Não venham falar que entender atípica tal conduta estimularia a prática de infrações, pois também é ingênuo acreditar que todos os crimes análogos ao processo ora julgado estão sendo descobertos, perseguidos e punidos. A cifra negra da criminalidade é tamanha que em nosso país, para se ter uma idéia, somente 6% do homicídios terminam com um culpado identificado, julgado e condenado. Imagine dizer de uma infração dessa natureza.
Se o aparelho do Estado não aprender a melhor utilizar seus recursos em situações realmente necessárias, continuaremos mantendo esse sistema de extrema desigualdade, marcado pela opressão da maioria usurpada dos meios legítimos de assistência do Estado, e abençoando e estimulando a criminalidade em larga escala, criminalidade que tantos prejuízos causa ao Estado e ao povo brasileiro.
Assim,
A) pela desproporção entre o fato e sua repercussão social e individual;
B) pela falta de desvalor da conduta e do resultado;
C) por não ferir, haja vista sua insignificância, o bem jurídico tutelado pela norma penal e as garantias de inviolabilidade contidas nos Direitos Fundamentais e que constituem a fundamentação do direito de punir do Estado (a inviolabilidade dos direitos à vida, intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, ao patrimônio, à liberdade de escolha e de locomoção; e à dignidade, dentre outros);
D) pela necessidade de respeitar a dignidade da pessoa humana do acusado, haja vista que a desproporção entre o fato e a situação jurídico-penal a que está submetido;
D) pelo tempo que já passou preso o acusado, 3 dias;
Entendo que a absolvição é a solução constitucionalmente mais acertada para o caso.
CONCLUSÃO
Isto posto, tendo em mira os argumentos colacionados, estimando que merece acolhida a tese de absolvição sumária, com supedâneo no art. 5º, XXXV e XXXIX, da Constituição Federal, e arts. 395 e 397, III, do Código de Processo Penal, e em homenagem ao sistema acusatório, ABSOLVO SUMARIAMENTE, E EXCEPCIONALMENTE ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, o acusado DANIEL (APAGADO) (APAGADO) da imputação formulada na peça acusatória.
Providências pertinentes.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Providências pertinentes.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Natal, 26 de outubro de 2011.
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
Nenhum comentário:
Postar um comentário