Eduardo Fagnani
O oportuno “Movimento por um Brasil com juros baixos” aponta que o somos um caso único na história econômica de prática de taxa de juros reais de dois dígitos por 16 anos seguidos. A ação sublinha os efeitos desta política nas baixas taxas de crescimento, entrada de capitais especulativos, redução da competitividade da indústria nacional, transferência de capital para a renda improdutiva em detrimento de investimentos na infraestrutura econômica e social, e no desequilíbrio das contas públicas (36% do Orçamento Geral da União são destinados ao pagamento de encargos da dívida). Se Macunaíma vivesse, certamente diria: “Pouca saúde e juros aberrantes, os males do Brasil são!”.
Somos líderes mundiais em taxa real de juros (6,8%). O Chile ocupa o segundo lugar (1,5%). A média do conjunto de quarenta países é negativa (-0,9%). O paradoxal é que essa aberração atual é uma benção em relação ao passado. Entre 1995 e 1999, a taxa nominal de juros atingiu o patamar insano de 40%.
Taxas de juros elevadas têm efeitos demolidores sobre as finanças públicas. Para pagar uma parte dos juros, o governo corta gastos sociais e investimentos, fazendo o chamado “superávit primário” (101 bilhões de reais em 2010). Porém, essa economia é insuficiente para o pagamento da totalidade dos juros. Em 2010, a parcela não paga totalizou 94 bilhões de reais, realimentando o explosivo estoque da dívida. Em valores nominais, entre 1994 e 2002 a dívida líquida interna do setor público subiu seis vezes, de 109 bilhões de reais para 660 bilhões de reais, dobrando como proporção do PIB (de 30 para 60%). Entre 2003 e 2010, cresceu duas vezes e meia: de 742 bilhões de reais para 1,8 trilhão de reais, mas caiu em proporção do PIB (44%) em virtude do crescimento econômico.
Em 2006, a então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, ao detonar o “rudimentar” Plano do Déficit Nominal Zero, colocou o dedo na ferida: “Para crescer, é necessário reduzir a dívida pública. Para esta não crescer, é preciso uma política de juros consistente porque senão enxuga-se gelo. Faço um superávit primário de um lado e aumento o estoque e o fluxo da dívida.”
Uma forma de visualizar o peso exorbitante dos juros na economia é comparar o seu dispêndio com o gasto social. Com a Constituição de 1988, construímos as bases de um sistema de proteção inspirado na experiência da social democracia europeia no pós–guerra. Passada a onda neoliberal, a partir de 2007 caminhamos no sentido de consolidar os avanços de 1988.
Em seu segundo mandato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi muito além do programa Bolsa Família. Reduzindo os juros básicos, o seu maior legado foi implantar uma estratégia de desenvolvimento social baseada no crescimento econômico, geração de emprego e renda e complementaridade entre políticas universais e focalizadas – até então vistas como excludentes. Ao recolocar o crescimento na agenda, após 25 anos de marginalização, começou por implantar o pilar inconcluso do projeto de reformas desenhado pelas forças que lutavam contra a ditadura militar: a concepção de uma estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento econômico com distribuição de renda.
Juros exorbitantes limitam o desenvolvimento social. A maior pressão do pagamento das despesas financeiras sobre o orçamento estreita as margens do financiamento dos gastos sociais. Um estudo do IPEA revela que, entre 1996 e 2003, a participação do gasto social federal na despesa total efetiva do governo declinou dez pontos percentuais (de 60 para 50%), enquanto a participação das despesas financeiras cresceu 16 pontos (de 17 para 33%). Isso explica o aumento da carga tributária entre 1995 e 2002 (de 29% para 36% do PIB).
Um ano de juros representa quantos anos de gasto social? Esse exercício segue abaixo com base nos principais agregados do gasto social federal utilizado na metodologia do IPEA para 2009 (valores de dezembro de 2010) e tomando como referência os 190 bilhões de reais de juros pagos no ano passado.
Um ano de juros financiaria mais de 63 anos de gasto em programas de Alimentação e Nutrição voltados para o combate à fome e à alimentação escolar, que distribui diariamente merenda para mais de 40 milhões de alunos do ensino público.
Seria o suficiente para financiar mais de cinco anos de gastos com a Assistência Social, que desenvolve ações como o programa Bolsa Família (com 50 milhões de beneficiários) e o programa Benefício de Prestação Continuada (3,8 milhões de pessoas).
Equivale a 32 anos de orçamento com o Desenvolvimento Agrário em ações como a Reforma Agrária e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
Um ano de juros representa cinco anos de gastos federais com Educação. Ao todo são mais de 53 milhões de estudantes matriculados em todos os níveis de ensino. Dados da Cepal (2006) revelam que o gasto per capita em educação no Brasil (128 dólares) fica abaixo de Cuba (328 dólares), Argentina (279 dólares), Costa Rica (235 dólares), México (233 dólares); Trinidad y Tobago (223 dólares), Venezuela (213 dólares); Chile (209 dólares); Panamá (185 dólares); Uruguai (173 dólares); Jamaica (162 dólares). A comparação com países desenvolvidos é ainda mais dramática.
O dinheiro transferido aos rentistas poderia financiar três anos de gasto com Saúde. O SUS é um dos maiores sistemas públicos do mundo, responsável pelo atendimento exclusivo de 75% da população. No ranking de 192 nações avaliadas pela Organização Mundial da Saúde (2008), o Brasil está entre os 24 países que menos destinam recursos de seu Orçamento para o setor (menos da metade da média mundial). Em termos absolutos, o governo brasileiro destina à saúde de um cidadão um décimo do valor direcionado pelos países europeus.
Um ano de juro equivale a 27 anos de investimento com Saneamento em 2009. Financiaria mais de 82 anos, se fosse considerada a média anual do período 1995 e 2006. Apenas 44% dos domicílios do País tem acesso à rede geral de esgoto (22% no Nordeste e 4% no Norte). Metade dos municípios brasileiros possui serviço de coleta de esgoto. Menos de um terço deles tratava o esgoto coletado, mas tratava apenas 70% da coleta.
Com esse dinheiro daria para cobrir mais de sete anos de investimento público em Habitação e Urbanismo em 2009. Seria possível financiar mais de 12 anos de habitação popular, se for considerada a média anual do período 1995 e 2006. Estima-se que o déficit habitacional no Brasil seja superior a oito milhões de moradias (40 milhões de pessoas). Cerca de 90% desse déficit concentra-se na faixa da população com renda de até três salários mínimos (80% da população).
Um ano de juros seria suficiente para construir 380 quilômetros de metrô, mais de nove vezes a atual rede do Rio de Janeiro e sete vezes a rede paulistana, que levaram 50 anos para serem construídas.
Torturando os números, alguns especialistas dizem que a Previdência Social é o maior gasto público. Insistem em desconsiderar a primazia das despesas financeiras. Pagamos com juros o equivalente a três anos do gasto com a Previdência Rural, que beneficia 28 milhões de pessoas direta e indiretamente (membros da família) e contribuiu, em parte, para que as migrações do campo à cidade caíssem pela metade na última década.
No caso da Previdência Urbana, os gastos se equivalem. Todavia há duas diferenças cruciais. Primeiro, ela é superavitária. Seus gastos são bancados pelos seus beneficiários e empresários. Segundo, atende 48 milhões de pessoas (direta e indiretamente), enquanto os juros fazem a festa de algumas dezenas de rentistas.
A despesa financeira é disparado o maior item de gasto público. Manobras contábeis consideram apenas a parcela dos “gastos correntes” que é financiada com impostos (“juros e encargos da dívida”). Se também for computada a parcela dos “gastos com capital”, que é financiada por recursos emprestados no mercado para a “rolagem” da dívida (“amortização e refinanciamento”), constata-se que os gastos financeiros representam mais de 40% do orçamento federal.
A sociedade deve decidir sobre o seu futuro. Políticas que atendam algumas dezenas de plutocratas ou milhões de brasileiros destituídos?
*Eduardo Fagnani é professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp e especialista em Políticas Sociais.
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