Por Paulo Moreira Leite
O resultado do último Enem demonstra que a desigualdade de entre nossos estudantes de escolas públicas e privadas atingiu um padrão imoral.
Oito em cada dez escolas públicas ficaram abaixo da média, numa escala nacional. Entre as dez melhores classificadas, encontra-se uma única escola pública. Na lista das dez piores, não há nenhuma escola privada.
Sabemos que a desigualdade entre ricos e pobres, no Brasil, é uma vergonha histórica. Mas os dados que o Enem demonstra superam todo limite. Colocam questão a perspectiva de futuro de boa parte de nossa juventude. E ajudam a entender o desanimo de muitos de nossos jovens para assumir uma postura de disciplina e assistir aulas. Para que?
Estes números retratam uma grande hipocrisia. Provam que o discurso pela melhoria na educação pública é apenas isso. Um discurso para os dias de festa, para os momentos de culpa. Na vida real, pouco se faz.
O colapso das escolas públicas, hoje, é o principal estímulo ao crescimento da educação privada. Ela transformou-se num grande negócio. Atrái investidores, inclusive de fora do país, interessados num mercado próspero e cativo. Com o desempenho atual da rede pública, quem não fará tudo o que estiver a seu alcance para mandar os filhos para um estabelecimento privado, mesmo de segunda linha?
Esse crescimento do ensino privado tem consequencias políticas, também. Diminui o interesse para recuperar o ensino público. Escolas de qualidade, gratuitas, sempre serão uma ameaça aos ganhos de estabelecimentos que cobram até R$ 2000 por mes — ou mais, num país onde o salário médio fica em torno de R$ 1300.
O drama do ensino público encontra-se no coração de nosso desenvolvimento. Tornou-se comum, hoje, ouvir queixas quanto a má formação de nossos trabalhadores. Naquela perspectiva de que ninguém tem nada a ver com isso, ninguém tem culpa nem responsabilidade, fala-se também em colapso de mão de obra.
Com um desempenho escolar muito superior ao brasileiro, a Coréia do Sul tornou-se uma referencia na maioria das conversas. Faz sentido comparar os dois países. Convém reparar, porém, que não se trata de uma questão educativa. Nem se trata de uma cultura que valoriza mais o ensino do que a nossa.
A diferença essencial é que o projeto de desenvolvimento da Coréia nos anos 60 e 70 incluia seus cidadãos. O país mobilizou-se para montar uma industria própria — aquela que agora conquistou uma fatia importante no mercado mundial de automóveis, de televisores, de computadores — e preparou sua mão-de-obra para isso. Para os coreanos, a boa educação não era um discurso, nem um enfeite. Era uma necessidade coerente com sua proposta de desenvolvimento, de um país que busca sua autonomia nacional, mesmo num ambiente de Guerra Fria, acossado por um vizinho belicoso.
O país queria produzir tecnologia, queria ter controle sobre seu crescimento. Não queria ser uma simples montadora de bens importados.
O projeto brasileiro foi outro. Nossa industrialização seguiu um modelo dependente, de quem atende necessidades do mercado externo mas não define seu lugar na economia mundial, aceitando passivamente encomendas de fora. Fomos os campeões da globalização planejada de fora para dentro. Os coreanos assumiram a postura de que nada se faria sem uma avaliação dos interesses do país.
O caso da industria automobilística é típico. Brasileiros e coreanos receberam, a seu tempo, investimentos de grandes multinacionais do setor. Enquanto o mercado brasileiro ficou aberto para empresas que só queriam receber subsídios para trazer montadoras e revender veículos concebidos e planejados em suas matrizes, a Coreia fez diferente.
Exigiu transferencia de tecnologia e, pouco a pouco, construiu suas próprias marcas. No Brasil, a Volks, a GM, a Ford continuam sendo a Volks, a GM, a Ford, até hoje. Na Coréia, transformaram-se em Hyundai, Kia e outras. As consequencias para a educação saíram daí. Um país formou operários especializados e até promoveu um inegável progresso regional. O outro precisava de operários mas também de técnicos e de engenheiros em quantidade muito maior.
A comparação ensina que as boas escolas públicas não são criadas em função da boa vontade dos governantes. Não são ilhas. Elas precisam cumprir uma função economica, trazer um retorno à sociedade.
No mundo coreano, era indispensável ter trabalhadores formados e bem preparados. No brasileiro, eles eram dispensáveis. Muitos engenheiros viraram suco, como se sabe. Os técnicos nem eram formados. Para que?
Aqui, quem pretendia estimular opções autônomas de desenvolvimento, era execrado como porta-voz de um pensamento nacionalista anacrônico. Durante o regime militar, podia ser até preso como subversivo.
Também foi no período militar que se passou a estimular o ensino privado, levando a classe média a abandonar as escolas públicas.
É por isso que, mesmo com algumas mudanças recentes, que a maioria dos especialistas aplaude como positivas, a melhoria do desempenho dos alunos de escolas públicas brasileiros mostra que temos um caminho arduo pela frente.
O grave é que, após décadas de incuria, os interesses privados tornaram-se mais fortes e consolidados e podem exercer uma pressão poderosa sobre os governantes.
Não faltam problemas de gestão nas escolas públicas. Também não faltam investimentos na formação de professores. E, apesar dos protestos previsíveis da turma do impostômetro, faltam recursos.
Um número exemplar. Como sabe todo pai de aluno de escola privada, é possível descontar perto de R$ 2700 por estudante na declaração anual do imposto de renda. É uma quantia modestíssima em relação ao que os pais gastam com seus filhos.
Mas vamos pensar em outro número. O gasto anual por aluno nas escolas públicas fica em torno de R$ 2500. É com isso que as escolas precisam pagar o salário dos diretores, fazer a manutenção do estabelecimento.
Vamos repetir: aquilo que o pai de classe média desconta no imposto de renda com a educação de seu filho equivale a tudo o que o Estado brasileiro investe nas escolas pública, por aluno, por ano.
Não é imoral?
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