24 de jan. de 2011

Satisfação ao bispo


Léo Rosa de Andrade em sua coluna Imperfeições no Notisul

Imagine-se adulto, esclarecido e com uma decisão a tomar. Fumar, por exemplo. Você quer fumar, eu não quero que você fume. Eu tenho um argumento forte: fumar faz mal para a saúde. Eu acredito que a saúde é um direito fundamental, também chamado de direito humano. A Constituição garante que direitos fundamentais devem ser preservados. Então, você não deve fumar, porque eu não quero, e o meu não querer, pretensamente, é garantido pelas leis vigentes. Certo? Errado. A Constituição não é um estatuto negativo, como o Código Penal. Regra geral, a Constituição me garante direitos, não me os suprime. Cabe a mim, se adulto e capaz, gerenciar minha existência. Não cabe a ninguém a tutoria das minhas decisões.
 
Impor ideias não!
A Corte Suprema dos Estados Unidos é conservadora, considerando a maioria de seus componentes. Cada um de seus juízes, individualmente, é contra a prática do aborto. Mas eles entendem que a questão é de foro íntimo. Na opinião do judiciário norte-americano, uma pessoal adulta e livre tem o direito e o dever de cuidar da própria vida, incluindo, é claro, cuidar de decidir se quer ou não interromper uma gravidez indesejada. Naquele país, quando os candidatos à presidência da república estão em debate e alguém pergunta algo sobre aborto, a resposta tem sido sempre a mesma, vinda da esquerda ou da direita: é assunto individual, não de Estado. A maioria dos norte-americanos é cristã, mas os cristãos já entenderam, há tempos, que não podem, e nem devem poder, impor suas ideias.
 
Estado laico
Assim é em qualquer república, pelo menos em qualquer república com fundamentos republicanos. Muitos países se declararam república, mas nunca assumiram adequadamente o espírito da coisa. República, nos tempos modernos, é uma concepção de organização da vida pública inventada pelos franceses, no fim do século 18. Na república, o Estado é laico, ou seja, não se mete nas questões morais oriundas de orientações religiosas. Espanha e Portugal, somente agora, após o ingresso na União Europeia, é que alcançaram vida republicana plena. Antes, na prática, eram Estados católicos. Como a América Latina é herdeira desses países, também, em grande parte, é herdeira do modo de pensar desses países.
 
Poder encurralador
Isso está mais presente nos nossos costumes do que se imagina, tanto agindo como proibindo agir. Mesmo após o fim da ditadura de 64, por pressão católica, foi proibido o filme Je vous salue Marie, de Godard. Uma obra de arte que me vetaram de assistir, ainda que eu fosse adulto e capaz. Os padres apelaram ao Sarney, então presidente do Brasil, e ele proibiu a película. O mundo livre inteiro viu. Nós não pudemos ver. Todos sabem, mas vamos aceitando isso como se fosse normal: a hierarquia católica interdita desde cenas de novela até carros alegóricos de carnaval. Essa máquina burocrática multinacional é tão poderosa entre nós que encurralou e fez a pauta moral da Dilma e do Serra durante a última campanha eleitoral. O tema aborto perdeu a neutralidade, virou mote de acusação.
 
Pura petulância
Agora, um senhor de nome João Braz de Aviz, bispo católico, acha que a presidenta da república brasileira deve “explicar melhor as suas convicções religiosas”. Afirma que “não temos uma ideia clara de quem é Dilma do ponto de vista religioso”. Espera “que as posições dela se aproximem das posições da igreja” (FSP,19jan11,A9). Isso me soa assustador. Mais ainda porque poucos se espantam com a petulância anacrônica. A Argentina só pode ser presidida por quem se declara católico. Nós já vencemos essa etapa e um pouco mais. Nenhum brasileiro tem que proclamar convicção religiosa alguma. Nem mesmo tem que se pronunciar religioso. E, claro, Dilma não deve satisfação ao bispo, a quem, em nosso passado triste, recomendava-se que o povo fosse se queixar.

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