Livro reacende debate sobre privatizações
Por Marcelo Semer
Durante o processo das privatizações, o Brasil entrou em transe.
A imprensa eufórica abandonou sua tradicional postura crítica para remar a favor.
Não é de se estranhar que a opinião pública tenha vibrado a cada batida do martelo na Bolsa de Valores, como se a entrega de empresas estatais ao setor privado pudesse representar alguma inebriante conquista do país.
O clima positivo foi incensado por reportagens que atribuíam ao gigantismo do Estado o atraso da economia e o débito social.
Em nome desse passaporte para a modernidade, o país se desfez não apenas de empresas pesadas e custosas, mas de potências lucrativas. Não apenas de empresas periféricas cujo controle pudesse representar uma forma extravagante de atividade econômica, mas de gigantes dos setores estratégicos de energia e comunicações.
Em um paradoxo até hoje mal explicado, estas empresas foram vendidas para o capital estrangeiro, mas pagas com dinheiro nacional. Fundos de pensões das estatais e o banco nacional de desenvolvimento social avalizaram os bilhetes premiados que permitiram as privatizações.
Ao final deste processo, algumas áreas se modernizaram (como a telefonia celular), outras nem tanto (como a energia), mas ninguém pôde exibir orgulhosamente os frutos de tamanhas vendas. O patrimônio estatal aparentemente reduziu-se a pó. Por prudência, receio ou conveniência, o governo petista que sucedeu FHC jamais questionou o processo.
Hoje, o distanciamento histórico nos permite avaliar acertos e erros das privatizações. Até para averiguar a viabilidade de sua continuação -atualmente centrada na infraestrutura (estradas e aeroportos) e expandida a serviço de setores essenciais, como a saúde.
Nesse horizonte crítico, o livro "A Privataria Tucana" (Geração Editorial), que bateu recordes de venda no final de 2011, agregou um novo condimento ao debate: a denúncia de que propinas pagas na formação dos consórcios e as vantagens que estes teriam auferido desembarcaram em contas de pessoas próximas a José Serra, então ministro do Planejamento.
O autor, Amaury Ribeiro Jr., centra sua pesquisa na criação de offshores em paraísos fiscais que teriam ocultado ganhos ilícitos do processo e o posterior investimento destas empresas de fachada no Brasil para internar o dinheiro. O jornalista foi atrás das constituições das empresas e, em vários casos, seguiu o rastro do dinheiro, apontando quando saiu e para onde voltou.
Seus personagens principais circulam, sobretudo, ao redor de José Serra: a filha, o genro, o primo e alguns amigos que também tomaram parte no processo, especialmente o ex-diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira, que depois foi tesoureiro de sua campanha. Para quem tem pouca familiaridade com economia, e não entende bem o complexo movimento do ir e vir do dinheiro, como mecanismo para ocultar origem e destino, a reportagem tem pontos esclarecedores.
A utilização de paraísos fiscais para evitar controles e tributações não é fato novo. Mas incomoda constatar o quanto de dinheiro sai de nossas fronteiras para empresas que se resumem a caixas postais em ilhas do Caribe e como retornam como valiosos investimentos internacionais. Isto pode valer tanto para o dinheiro da corrupção (como sustenta o MP, em relação a Paulo Maluf) quanto para o do tráfico. Pode ser produto de fraude ao INSS ou de sonegação de empresas aparentemente respeitáveis.
Não se pode dizer, entretanto, que o livro-reportagem condene José Serra. Não há qualquer referência à empresa ou negócio de que ele tenha participado diretamente.
Mas tampouco é prudente afirmar, sem qualquer análise da veracidade e relevância sobre os documentos juntados, que tudo não passa de "peça de ficção", como apressadamente sentenciou o jornalista de O Globo, Merval Pereira.
Ainda que não seja um porto de chegada, pode se transformar em ponto de partida - pautas, no jargão jornalístico.
Mas eis que veio justamente da imprensa a maior polêmica no entorno político que cercou o lançamento do livro. Sucesso imediato de vendas e tema dos mais compartilhados pela web, o livro quase não foi notícia na grande mídia.
Em alguns dos principais meios de comunicação, foi simplesmente ignorado; em outros, a menção só veio como forma de defesa do processo ou de seus envolvidos. O conhecido espírito crítico, a famosa ânsia de investigar fios desencapados, as coincidências que tradicionalmente sensibilizam os jornalistas, tudo isso ficou adormecido. E paradoxalmente, no ano que a grande imprensa tanto se jactou de ser fábrica de derrubar ministros a partir de denúncias veiculadas em suas telas e páginas.
A defesa ideológica da causa ou a eventual preferência política não devem influir nas pautas, sob pena de contrariar justamente o interesse público que representam. Afinal, como lembrou Wladimir Safatle, nas páginas da Folha de S. Paulo, "o primeiro atributo dos julgamentos morais é a universalidade".
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