Autos n° 023.11.026976-7
Ação: Cautelar Inominada/atípica/Cautelar
Requerente: Ismael dos Santos e outros
Requerido: Marcha da Maconha Brasil
"Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final
Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial"
(Caetano Veloso)
Vistos, etc...
Ismael dos Santos, Centro Terapêutico Vida - CTV, e JC – Associação Brasileira de Combate às Drogas, qualificado à fl. 02, ajuizaram, por meio de procurador, a presente ação que denominam de "Medida Cautelar Inominada" em face de Marcha da Maconha Brasil, também qualificada.
Pretendem a concessão de liminar para a suspensão de evento nesta Capital, determinando-se medidas para a não realização da denominada "Marcha da Maconha", nesta cidade, sob pena de crime de desobediência.
Não indicam ação principal e pedem a citação genérica e editalícia dos responsáveis pelo sítio da rede mundial de computadores denominado www.marchadamaconha.org.
É o relatório.
Decido:
Impõe-se o indeferimento da inicial.
Dentre os defeitos que a contaminam, já de início urge lembrar que para se estar em juízo é necessário ter existência jurídica, o que não ocorre em relação à denominada ré.
É cediço, outrossim, que não há lugar no ordenamento jurídico pátrio para cautelares satisfativas. Característica intrínseca ao processo cautelar é a sua instrumentalidade (acessoriedade). Isto é, trata-se de um mecanismo processual que visa resguardar o resultado útil de futura ação de conhecimento ou de execução. É o instrumento de outro instrumento.
No caso dos autos, verifico o nítido caráter satisfativo da pretensão, que consiste pura e simplesmente que seja obstado o evento atacado.
Vale anotar, também, que os autores partem da premissa de que na aventada marcha ocorrerá ilícito penal, e fere a razoabilidade admitir como cabível o manejo de ação cautelar cível para obstar a prática de um crime que, em tese, se imagina possa acontecer.
Ora, a prática de crime deve ser obstada e punida na esfera penal, ofendendo ao bom senso que, usando o mesmo raciocínio da inicial se admita uma cautelar cível, por exemplo, para proibir furtos em uma determinada região. Os argumentos a esse título trazidos à fl. 08 se sustentam em conjecturas do que poderia acontecer, e não justificam pedido que, no estado atual dos fatos, nada mais faz do que tentar obstar manifestação de um grupo indeterminado de pessoas.
Vale, por fim, trazer a sensata argumentação do magistrado paulista Marcelo Semer:
"Será que podemos dizer que defender a legalização da maconha seja mesmo uma apologia ao uso das drogas?
Se a manifestação fosse de gestantes pela não criminalização do aborto, diríamos que se se tratava de uma apologia à interrupção da gravidez?
A democracia é construída por contrastes. É natural divergir e faz parte das regras respeitar o pluralismo.
Pode ser pluralismo defender algo que hoje é ilícito?
Pois é o que os ruralistas fizeram ao pleitear mudanças no Código Florestal. Com a significativa diferença de que com a revisão do Código, busca-se expressamente a anistia para todos aqueles que já cometeram os atos ilícitos de desmatamento.
O debate quanto à descriminalização dos entorpecentes, aliás, está em pauta no mundo inteiro. Por que estaria proibido por aqui?
A democracia fica menor cada vez que uma manifestação é reprimida a bala.
Nesses momentos, é impossível não se lembrar dos anos de ditadura e as tantas passeatas que foram interrompidas na base do cassetete.
De lá para cá, todavia, uma nova Constituição foi escrita e nos acostumamos a chamá-la de cidadã, justamente por assegurar o direito à reunião, à livre manifestação sem necessidade de autorização e à liberdade de expressão sem censura prévia.(...)
A nostalgia da repressão chega, curiosamente, em um momento de despertar da cidadania, em sua acepção mais legítima.
Estamos no limiar da construção de uma nova política, ainda que não saibamos exatamente qual será ela.
As redes sociais aproximam as pessoas de tal forma, que não estão mais sendo necessárias lideranças para convocar ou promover manifestações, suprindo, para o bem ou para o mal, uma enorme crise do sistema representativo, que atinge governos e oposições.
Os exemplos da Praça Tahir, e de vários outros pontos pelos quais sopraram os ventos da primavera árabe, mostraram a velocidade da disseminação nas redes sociais, e sua enorme influência na capacidade de mobilização. O Egito derrubou um ditador de décadas, sem um único líder governando as massas.
Até São Paulo provou um pouco dessa nova espontaneidade, com o churrasco da 'gente diferenciada'. Marcado por um convite no Facebook, agregou em cascata centenas de pessoas indignadas com o preconceito como motor de recusa a uma estação de Metrô.
Desde o dia 15 de maio, mais de uma centena de praças espanholas estão repletas de jovens, de desempregados e de aposentados, clamando por uma democracia real, que não os exclua das riquezas do país e não os marginalize nas decisões.
Reuniram-se sem líderes e sem partidos e passaram a cobrar perspectivas que a Espanha vem lhes negando: "Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir", dizem em um de seus mais repetidos slogans.
Dá pra pensar na nostalgia dos anos de chumbo?
Não há espaço nesse admirável mundo novo para uma democracia que interdite o debate, um Estado que decida apenas ouvindo suas elites, uma política que sirva para o enriquecimento de seus burocratas, e juízes que se estabelecem como censores.
Alguma coisa está fora da ordem e isso não é necessariamente ruim." (fonte: Terra Magazine)
Desnecessárias outras considerações. Não há possibilidade de suprimento das falhas apontadas e o feito está, de qualquer forma, fadado à extinção, por impossibilidade jurídica do pedido.
Isso posto, indefiro a petição inicial e julgo extinto o presente processo, com fulcro no art. 267, IV e VI, § 3o, do CPC c/c art.295, II do mesmo estatuto.
Custas pelos autores.
P. R. I.
Florianópolis (SC), 25 de maio de 2011.
Maria Paula Kern
Juiza de Direito